KILLIFISHES DO PANTANAL MATOGROSSENSE


João Damasceno Soares (in memoriam) 
                      
            
                                                                                                                                            (HABITAT 70 - MAIO 2002)



Obs.: Os nomes de gêneros e espécies foram grifados em
AMARELO a fim de facilitar a leitura em telas de computador.



Damasceno




Stenolebias damascenoi


Na foto de cima, o autor João Damasceno Soares coletando killifishes perto de Várzea Grande (MT).
Foto: J. A. Barbosa.

Na foto de baixo, Stenolebias damascenoi (Costa, 1991), espécie anual descoberta pelo autor e nomeada em sua homenagem. Foto: Marcelo Notare.




Fomos informados pelo editor dessa revista que nossos artigos têm constituído grande atração para os aquariofilistas, alcançando expressiva repercussão. Ficamos muito felizes com o fato e julgamos ser essa a nossa maior recompensa. Continuaremos a divulgar nossas atividades, dando ênfase aos detalhes que se destacam no interesse da Aquariofilia e da Ciência em geral. Fazemos isso sem
qualquer indício de vaidade, na esperança de estar colaborando para maior conhecimento da fauna e flora aquáticas dessa região fantástica que é o Pantanal Matogrossense, onde ainda são descobertas espécies novas e muito raras.

Durante a estação chuvosa sentiamo-nos um pouco frustrados. Neste período, a maior parte das espécies que capturamos alcança os campos inundados, após o transbordamento dos rios, baías e lagoas, em busca de alimentação mais abundante e para realizar seu ciclo reprodutivo. Ficávamos ociosos, até que fomos descobrindo novas opções.


No presente artigo apresentamos a descoberta de killifishes anuais, grupo peculiaríssimo de peixes que despertou nossa curiosidade por sua beleza e hábitos característicos. As espécies habitam coleções de água pouco profundas, normalmente lagoas temporárias, aparecendo na estação das chuvas, entre outubro e março. Possuem colorido exuberante e porte de pequeno a médio. Ao se aproximar a estação seca depositam seus ovos no fundo lodoso e lamacento das poças em que vivem; com o advento da seca, os ovos conservam-se no substrato úmido até a próxima estação chuvosa, quando eclodem e iniciam novo ciclo.


Todos os killifishes anuais sul-americanos estão incluídos na família Rivulidae, subordem Aplocheiloidei, ordem Cyprinodontiformes. Apesar de bem difundidos no meio aquarístico da Europa, o mercado para eles ainda permanece restrito no
Brasil, certamente devido à falta de informações. Todavia, com a divulgação promovida pelas associações e meios de comunicação, apresentando trabalhos de aquariofilistas e de ictiologistas sobre as espécies conhecidas e a descrição de outras novas, a situação vem se modificando. O resultado tem sido uma maior participação de tais peixes nas lojas especializadas e o crescimento do interesse por parte dos aficionados.

Nosso primeiro contato com killifishes do Pantanal foi em fevereiro de 1986 quando capturamos alguns exemplares do gênero Rivulus Poey, 1860 (não anual) do grupo R. punctatus Boulenger, 1895 em reservatórios naturais de pequenas nascentes denominadas “cacimbas”, com águas limpíssimas, pH ácido e dureza média, em loteamento urbano próximo do centro de Várzea Grande (MT). Trata-se de espécie de larga distribuição.



Rivulus_punctatus





























Rivulus
aff. punctatus, espécie (não-anual) de Rivulidae
. Foto: Marcelo Notare.



Em abril do mesmo ano tivemos o prazer de receber a visita do amigo Carlos Rogério R. Prata, do Rio de Janeiro. Fomos juntos pescar na região de Pai André, onde capturamos pela primeira vez alguns exemplares de uma nova espécie de peixe anual, descrita na Revista de Aquariofilia como Cynolebias glaucopterus (Costa & Lacerda, 1988) e mais tarde incluída no gênero Plesiolebias (Costa, 1990). Obtivemos pequeno número de exemplares devido ao início da estação seca. Por ocasião do retorno do nosso amigo ao Rio de Janeiro, inadvertidamente embalamos as Plesiolebias junto com exemplares juvenis de Crenicichla sp. que as deglutiram durante o período de viagem. Tal fato impediu a descrição da espécie com dois anos de antecedência. Em fevereiro do ano seguinte verificamos ser muito ampla a distribuição de P. glaucopterus pois também a capturamos nas localidades de Bonsucesso, Santo Antonio Leverger, Mimoso, Barão de Melgaço, N.S. Livramento e Poconé, sempre em simpatria com Trigonectes balzanii (Perugia, 1891) e Pterolebias longipinnis Garman, 1895, outros dois peixes anuais.


Plesiolebias_glaucopterus





























Plesiolebias glaucopterus
(Costa & Lacerda, 1988)
. Foto: Marcelo Notare.


Em janeiro de 1987 fomos pescar em uma chácara de propriedade de um amigo, situada na região de Sucuri, junto às margens do Rio Cuiabá, a 18 quilômetros de Várzea Grande. O terreno era composto de argila própria para a fabricação de tijolos, uma das atividades desse nosso amigo. Ao recolher a argila com essa finalidade, formaram-se grandes depressões no terreno que no período de chuvas encheram, dando origem a dezenas de lagoas; nelas encontramos Trigonectes balzanii e Pterolebias longipinnis em razoável quantidade.


Trigonectes_balzanii




























Trigonectes balzanii
(Perugia, 1891)
. Foto: Marcelo Notare.



Pterolebias_longipinnis

























Pterolebias longipinnis
Garman, 1895, espécie anual de ampla distribuição
. Foto: Marcelo Notare.


Estivemos por dois dias pesquisando lagoas formadas às margens do Rio Pari em busca de Neofundulus parvipinnis Costa, 1988, porém não obtivemos sucesso. Durante o ano de 1989 tivemos chuvas fortes fora da estação, nos meses de agosto e setembro. Em novembro o Pantanal estava quase completamente seco mas em dezembro vieram as primeiras chuvas fracas. Em janeiro do ano seguinte fomos em busca de plantas aquáticas. Nessa viagem conseguimos capturar 300 exemplares de Trigonectes balzanii e mais alguns peixes juvenis que a princípio julgamos ser uma nova espécie do gênero Rivulus e cujo colorido do corpo assemelhava-se bastante ao de Trigonectes. Todavia, ficamos intrigados, pois dentre os 30 exemplares coletados não havia ao menos um que apresentasse ocelo na base da nadadeira caudal, característica marcante das fêmeas do gênero Rivulus. Coletamos diversas mudas de Echinodorus cf. scaber Rataj, belíssimas, além de outras plantas aquáticas. Ao chegar em casa, acomodamos os Trigonectes em tanque de 240 litros, densamente plantado com Egeria densa Planch., e passamos a alimentá-los com larvas de mosquito e pasta de coração de boi, o que favoreceu seu rápido crescimento. Certo dia, ao olhá-los de cima, notei que alguns exemplares apresentavam colorido mais claro, tendendo ao dourado. A observação mais cuidadosa revelou não se tratar de Trigonectes, pois eram muito diferentes na forma física, no colorido e no temperamento. Menos agressivos entre si, apresentavam colorido espetacular, conforme cresciam. Tive convicção de haver encontrado acidentalmente Neofundulus parvipinnis, cuja ocorrência na região eu havia tomado conhecimento através de bibliografia pertinente. Enviei amostras a Marcelo Notare que confirmou o táxon. Estava de posse de 70 exemplares de Neofundulus parvipinnis, peixe anual raríssimo, cuja quantidade capturada até aquele evento somava apenas 25 exemplares, dentre as quatro espécies que compõem o gênero. A propósito, o gênero Neofundulus foi revisado pelo ictiólogo Wilson J. E. M. Costa (Costa, 1988), da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em seu trabalho são descritas duas novas espécies: N. parvipinnis, do Rio Cuiabá, e N. guaporensis, do Rio Guaporé. Em fevereiro do mesmo ano voltamos ao local mas nada pudemos capturar pois havia chovido com mais intensidade e a região encontrava-se completamente alagada. Contudo, pretendemos retornar na recessão das águas em busca de novos espécimes.


Neofundulus_parvipinnis


























Neofundulus parvipinnis
Costa, 1988
. Foto: Marcelo Notare.


Dirigimo-nos ao local onde anteriormente havíamos encontrado os supostos Rivulus, distante cerca de 30 quilômetros. Conseguimos capturar por entre a densa vegetação aquática, em água corrente, espécimes com o dôbro do tamanho. Porém, não eram peixes do gênero Rivulus. Identificamos a espécie como Pterolebias phasianus Costa, descrita em 1988. Outro belíssimo anual que nos impressionou bastante por suas cores, com tonalidades azuis esverdeadas nos flancos. Possui hábitos pacíficos em relação às outras espécies do gênero, corpo mais baixo e conformação do focinho parecida com a de Rivulus, daí a confusão inicial. Do formato de sua nadadeira caudal e da distribuição do colorido, outro nome específico mais adequado não poderia ser concebido: do latim phasianus, significando faisão.



Pterolebias_phasianus































Pterolebias phasianus
Costa, 1988.
Foto: Marcelo Notare.



Ao retornarmos, encontramos várias lagoas de água parada, onde predominava a vegetação composta de musgos e gramíneas. Ainda era cedo e a temperatura estava alta. Resolvemos pesquisar neste local, e esperamos que o Sol desaparecesse no horizonte a fim de que os peixes não sofressem com o excessivo calor durante o percurso de volta. Capturamos muitos espécimes de Plesiolebias glaucopterus, machos e fêmeas. Ao colocá-las em aquário, tivemos a grata surpresa de verificar que, misturadas a elas, havia três exemplares de uma nova espécie anual, de igual porte, cujo padrão de colorido e formato das nadadeiras dorsal e anal eram bastante diversos. Ao contrário de P. glaucopterus, os machos deste anual não possuem faixa látero pré-dorsal vermelha. Seus hábitos são pacíficos. Em homenagem a seu descobridor, a nova espécie foi descrita com o nome de Plesiolebias damascenoi Costa, 1991 (VER FOTO NO INÍCIO DESTE ARTIGO). Mais tarde, foi criado um novo gênero para enquadrar a espécie, chamado Stenolebias Costa, 1995. Segundo o ictiólogo Wilson Costa, autor das descrições, trata-se de espécie com características evolutivas “sui generis”, sendo por este motivo de inestimável valor para o estabelecimento de relações de filogenia com os demais representantes do grupo. Mais um belo e raro killifish anual endêmico do sistema pantaneiro, de onde seguramente surgirão outras espécies ainda deconhecidas da ciência e da aquariofilia.




Um fato negativo que precisa ser divulgado foi o de termos encontrado em uma das lagoas marginais à estrada Transpantaneira, na região de Poconé, em pleno coração do Pantanal Matogrossense, vários peixes intoxicados provavelmente pelo contato com resíduos de mercúrio usado na garimpagem do ouro. Apesar de a fiscalização do Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) ter se tornado mais eficiente, ajudada por turistas nacionais e estrangeiros imbuídos da consciência da preservação do meio ambiente nesse santuário ecológico, não se pode descartar a possibilidade da ação de agressores clandestinos ao ecossistema. É fato lamentável, digno de ser verificado pelas autoridades competentes.


Temos sido felizes em poder encontrar locais sadios, sem qualquer indício de poluição, onde estamos descobrindo maravilhas da natureza, que é muito pródiga para com a região. Continuaremos nosso trabalho e, sem dúvida, voltaremos em outras oportunidades apresentando os resultados obtidos.



AGRADECIMENTO

Ao amigo Marcelo Notare pelo apoio e incentivo. Dedico este trabalho à minha querida mãe, Maria Fausta Soares, grande amiga e incentivadora.



REFERÊNCIAS

Costa, W.J.E.M. (1988) Sistemática e distribuição do gênero Neofundulus (Cyprinodontiformes, Rivulidae). Rev. Bras. Biol., 48(2): 103-111.

—. (1988) A new species of neotropical annual fish genus Pterolebias from Central Brasil. J. Zool., 215(4): 657-662.


—. (1989) Evolução e estado atual da taxonomia de peixes anuais (Cyprinodontiformes, Rivulidae) da região Centro-Oeste do Brasil. Rev. Aquariofilia, 7: 53-55.


—. (1990) Descrição de um gênero e duas espécies novas de peixes anuais do Centro da América do Sul (Cyprinodontiformes, Rivulidae). Comunicações do Museu de Ciências PUCRS. Série Zoologia, 2(10): 191-202.


—. (1990) Systematics and distribution of the neotropical annual fish genus Trigonectes (Cyprinodontiformes, Rivulidae), with description of two new species. Ichthiol. Explor. Freshwaters, 1(2): 135:150.


—. (1991) Systematics and distribution of the neotropical annual fish genus Plesiolebias (Cyprino-dontiformes: Rivulidae) with the description of a new species. Ichthiol. Explor. Freshwaters, 1(4)


—. (1998) Phylogeny and classification of Rivulidae revisited: Origin and Evolution of annualism and miniaturization in rivulid fishes (Cyprinodontiformes: Aplocheiloidei). J. Comp. Biol. 3(1): 33-92.


— & Lacerda,
M.T.C. (1988) Descrição de uma nova espécie de Cynolebias do Brasil Central (Cyprinodontiformes, Rivulidae). Rev. Aquariofilia, 5: 16-20.




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