FETO-DE-JAVA

 Microsorum pteropus (Blume) Ching, 1933


 Marcelo Notare
                                                                                                                              
                                                                                                                    (HABITAT 73 - ABRIL 2003)




 Obs.: Os termos técnicos poderão ser conferidos no glossário do final deste artigo.




Habitus3


 Uma touceira de Microsorum pteropus. Essa planta anfíbia alastra-se com relativa
 rapidez no aquário. Foto: Marcelo Notare.



O antigo grupo das pteridófitas*, hoje desmembrado em vários outros — Rhyniophyta, Zoosterophyllophyta, Trimerophyta (fósseis), Licopodiophyta, Equisetophyta, Psilotophyta, Sphenophyta e Pterophyta —, inclui todas as plantas vascularizadas sem sementes cujo ciclo reprodutivo se caracteriza por uma alternância de gerações resultante do maior distanciamento entre os processos de fecundação e meiose. Tendo sido as primeiras plantas a desenvolver estruturas de absorção e transporte de nutrientes (raízes e vasos condutores de seiva), as pteridófitas puderam colonizar de modo mais efetivo o ambiente terrestre. Atingiram o auge no Período Carbonífero da Era Mesozóica, há 300 milhões de anos, antes dos dinossauros. Hoje, os grandes depósitos de carvão fóssil são o testemunho do colossal desenvolvimento das florestas de pteridófitas ocorrido naquele período.

(*) Neste artigo, por conveniência de nomenclatura, ainda será usado o termo pteridófitas para designar o grupo das plantas vasculares sem sementes.

Neste grupo, destaca-se a família Polypodiaceae, que inclui o gênero Microsorum** Link, 1933, com cerca de 37 espécies de hábitos epifíticos, da África e Região Indo-Malaia. Este gênero de plantas é diagnosticável pelos seguintes caracteres: rizoma rastejante, dictiostelo, paleado; estipe remota, articulada com o filopódio; frondes simples e inteiras, ou pinatífidas, raramente pinuladas, herbáceas a coriáceas, glabras ou raramente pubescentes mas não paleadas, de margem inteira; nervação irregular, reticulada, com numerosas ramificações contendo nervuras espalhadas em todas as direções, finalizando nos hidatódios; soros punctiformes, sem paráfises, em geral muito pequenos e numerosos, irregularmente dispersos; anulus com 14-16 células; esporos bilaterais, lisos.

(**) Grafia correta, sem o segundo "i" (sorum = soro).

Existe outro gênero estreitamente relacionado, Phymatodes Presl, 1836, de mesma distribuição geográfica, o qual Copeland (1947), contrariando Christensen (1938), sinonimizou com Microsorum por não ter encontrado evidências que justificassem a distinção. O gênero Bolbitis Schott, 1834, também com representantes aquáticos, das regiões tropicais do mundo (inclusive Brasil), antes enquadrado na família Polypodiaceae, foi deslocado para Lomariopsidaceae.

Microsorum pteropus (Blume) Ching, 1933, originária da Índia, sul da China e Região Indo-Malaia junto às Ilhas Filipinas, é a única espécie do gênero introduzida na aquariofilia. Esta planta anfíbia possui rizoma rastejante, do qual surgem folhas que atingem 10 a 25cm de comprimento e 2,5 a 7,5cm de largura. O limbo, inteiro na forma submersa, é largo-lanceolado, de cor verde escuro e margens ligeiramente onduladas. Na natureza, vegeta fixada em troncos, pedras ou diretamente no solo, dentro ou fora d’água. A forma emersa produz folhas nitidamente trilobadas. É curioso notar que Microsorum pteropus tem sido mantida e cultivada há muitas décadas pelos aquaristas cariocas, tornando-se bastante comum nas lojas de aquariofilia do Rio de Janeiro. Agora, com o desenvolvimento do aquário plantado, o seu cultivo alastrou-se por todo o País.


Emerso



 Cultivo emerso. Note algumas folhas nitidamente trilobadas. Foto: Marcelo Notare.



A reprodução das pteridófitas, salvo os casos de multiplicação vegetativa, é feita por meio de esporos. Neste caso, o vegetal duradouro, formador de esporos (geração diplóide), origina-se de um organismo diminuto de vida curta, denominado protalo, formador de gametas (geração haplóide). Os esporos têm dimensões exíguas (como os grãos de poeira fina) e são formados dentro de estruturas denominadas esporângios.


Trilobada

 Folha fértil (filopódio) de Microsorum pteropus com formação de soros na sua face
 inferior. Foto: Marcelo Notare.



Nos gêneros Acrostichum L. (família Acrostichaceae), Ceratopteris Brongn. (família Pteridaceae), Bolbitis Schott (família Lomariopsidaceae) e Microsorum (família Polypodiaceae), os esporângios aparecem agrupados na face inferior das folhas mais antigas em soros nús ou cobertos de fino tecido (indusia). No gênero Isoetes L. (família Isoetaceae) formam-se na base da face inferior das folhas, junto ao rizoma.

Nos gêneros Marsilea L., Pilularia L., Regnellidium Lindm. (família Marsileaceae) e Salvinia Séguier (família Salviniaceae) os esporângios encontram-se encerrados dentro de estruturas fechadas e curto-pediceladas chamadas esporocarpos, nascidas da base dos pecíolos foliares. A reprodução em larga escala por meio de esporos mostra-se particularmente eficiente com as espécies dos gêneros Isoetes, Acrostichum, Ceratopteris, Marsilea e Microsorum, embora a maioria só forme esporos no cultivo emerso.

Conforme ficou dito, Microsorum pteropus desenvolve soros na face inferior da folha (ver fotos). Os esporos maduros devem ser semeados em recipiente contendo terra bastante úmida, de preferência com tampa (transparente). Após a formação dos protalos e a fecundação das oosferas, surgem as plântulas definitivas. A adaptação ao meio aquático deve ser feita com adição gradativa de água no recipiente. A multiplicação vegetativa (assexuada) se dá através de simples divisão do rizoma (cada pedaço com, pelo menos, uma folha) ou por mudas que surgem perto do cume das folhas mais antigas.


Soros


 Detalhe da folha com formação de soros. Foto: Marcelo Notare.



mudas


 Reprodução assexuada: mudas adventícias formadas perto do ápice das folhas
 submersas mais antigas. Foto: Marcelo Notare.


O cultivo de Microsorum pteropus em aquário é fácil e não exige cuidados especiais. Inicialmente, deve ser amarrada com fitilho ou barbante em troncos ou pedras, até que as raízes se fixem a esses objetos. O seu desenvolvimento ocorre em água ácida e mole, com temperatura entre 20° e 25°C, não importando o tipo de luz (moderada ou intensa). Quando bem adaptada, Microsorum pteropus alastra-se com relativa rapidez, formando touceiras de extraordinário efeito decorativo. As áreas escuras ou translúcidas que às vezes aparecem nas folhas, e que tendem a aumentar em número e tamanho, são, quase sempre, devidas ao excesso de compostos nitrogenados ou ao excesso de ferro em dissolução na água. A troca semanal de parte (até 1/3) dessa água impura por água nova ajuda a resolver o problema.


Habitus

 O cultivo em aquário de Microsorum pteropus é fácil e não requer maiores
 cuidados...



Nitratos 













 ... mas às vezes, repentinamente, toda a coleção se degrada. Isso
 pode ser devido ao excesso de compostos nitrogenados
 na água. Fotos: Marcelo Notare.




WindelovTropica


















 Alguns cultivares foram desenvolvidos: Microsorum pteropus "Windeløv"
 (esquerda) e Microsorum pteropus "Tropica".
 Ilustrações: Tropica (divulgação).






O Ciclo Reprodutivo das Pteridófitas


Ciclo_Microsorum


 Ciclo reprodutivo de Microsorum pteropus. Ilustração: Marcelo Notare.




Em quase todos os seres vivos, as células constituintes do corpo ou células somáticas têm o dobro de cromossomas das células reprodutoras ou gametas. Quando os núcleos dos gametas se unem, a célula resultante volta a ter o número normal de cromossomas — senão este número dobraria a cada geração. As células somáticas possuem os cromossomas dispostos em pares (cromossomas homólogos), sendo por isso chamadas de células diplóides (2n). Os cromossomas homólogos são iguais em tamanho e possuem gens correspondentes. As células reprodutoras ou gametas têm os cromossomas solitários e por isso são chamadas de células monoplóides ou haplóides (n) (gr. haplos = simples).

As células haplóides são produzidas por um tipo especial de divisão celular — a meiose —, que ocorre em algumas células diplóides. Durante o processo de meiose, os cromossomas homólogos se separam e cada um deles se fende longitudinalmemte, tornando-se uma estrutura formada por duas cromátides. Assim, cada par de cromossomas homólogos dá origem a quatro cromátides. Em etapa seguinte ocorre a separação das cromátides que deste modo tornam-se cromossomas independentes. A divisão por meiose forma, portanto, quatro células haplóides a partir de uma única célula diplóide. A fecundação é a fusão de duas células haplóides. Meiose e fecundação são fenômenos comuns a todos os seres vivos que se reproduzem sexualmente.

Nos animais o processo de meiose dá origem a gametas. Nos vegetais a meiose não origina gametas mas sim esporos. Em condições favoráveis o esporo se desenvolve, originando um organismo haplóide que, agora sim, formará os gametas. A duração da fase haplóide nos vegetais está relacionada com sua posição na escala evolutiva: quanto mais curta esta fase, mais evoluída pode ser considerada a planta. Ao se comparar o ciclo reprodutivo dos diversos ramos filéticos, conclui-se que as pteridófitas representam uma etapa de transição entre as chamadas plantas inferiores (algas e musgos) e as plantas superiores (plantas com sementes).

As samambaias, por exemplo, em certas épocas do ano, formam estruturas na face inferior das folhas — os soros, constituídos de células diplóides que entram em processo de meiose, originando os esporos. Quando maduros, os esporos caem no solo e começam a se dividir mitoticamente até formar um pequeno vegetal haplóide clorofilado — denominado protalo (ver fotos). Na face inferior deste organismo de transição surgem gametângios masculinos (anterídios), produtores de anterozóides, e gametângios femininos (arquegônios), produtores de oosferas.


Protalos






















 Protalos recém-formados. O alfinete foi colocado para comparação de tamanho. 
 Os protalos têm dimensões exíguas. Foto: Marcelo Notare.


Protalos_closeup


 Protalos (haplóides) fotografados no detalhe. Note as primeiras plântulas 
 duradouras (diplóides) se desenvolvendo (folhas compridas).
 Foto: Marcelo Notare.


Diploides

 
 Plântulas definitivas já formadas. Algumas ainda estão ligadas aos protalos. Agora,
 elas podem ser lentamente adaptadas ao estado submerso, bastando adicionar
 água, aos poucos, no recipiente de cultura. Foto: Marcelo Notare.




Os anterozóides nadam na água retida pelo protalo até encontrar os gametângios femininos, dando-se então a fecundação da oosfera. O zigoto formado (diplóide) cresce e se transforma em planta adulta que irá produzir novamente os esporos. Observa-se que, neste grupo, o ser duradouro é o esporófito diplóide, e o transitório, o gametófito haplóide. Outras plantas sem sementes apresentam ciclo de vida ainda mais complexo, embora semelhante ao das samambaias.

Entre as pteridófitas, há plantas isosporadas (e.g. gêneros Acrostichum L.; Ceratopteris Brongn.; Bolbitis Schott; Microsorum link), que produzem esporos de um só tipo, originando protalos hermafroditas, e plantas heterosporadas (e.g. gêneros Isoetes L.; Azolla Lam.; Marsilea L.; Salvinia Séguier), que produzem esporos diferenciados em micrósporos e megásporos, originando, respectivamente, protalos masculinos (formadores de anterozóides) e protalos femininos (formadores de oosferas).





Agradecimentos

Claudia Petean Bove pelos esclarecimentos taxonômicos das antigas pteridófitas. Frauke Allmenroeder pelo apoio com bibliografia. Álvaro Carvalho, Célio Martins e Michael Bleher pelos espécimes cedidos.


Bibliografia

Brasil, G.C. (1988) Notas sobre o cultivo de Bolbitis heudelotii. Rev. Aquariofilia, 3(7): 47-48.

Christensen, C. (1938) Felicinae. Manual of Pteridology. Ed. Verdoorn.

Copeland, E.B. (1947) Genera Filicum, the Genera of Ferns. Annales Cryptogamici et Phytopathologigi. Chronica Bot. Co.

Cronquist, A. (1968) The Evolution and Classification of Flowering Plants. Houghton Mifflin Co.

Gartner, O. (1995) Versuche zu ihrer geschlechtlichen Vermehrung. D. Aqu. u. Terr. Z. (DATZ), 48(11): 726-728.

Luther, H. (1949) Vorschlag zu einer ökologischen grund-einteilung der Hydrophyten. Acta Bot. Fennica,  44: 1-15.

Notare, M. (1992) Plantas Hidrófilas e seu Cultivo em Aquário. Ed. Sulamérica e Flora Bleher.



Glossário

Anterozóide - Gameta masculino dos vegetais.

Anulus - Nas pteridófitas, grupo de células diferenciadas dos esporângios que desempenha papel importante na abertura dos mesmos.

Coriáceo - Semelhante ao couro.

Dictiostelo - Estelo no qual as grandes lacunas foliares se arqueiam e seccionam o sistema vascular em feixes, cada qual com o respectivo floema envolvendo o xilema.

Esporângio - Órgão onde se formam os esporos das plantas sem sementes.

Esporo - Célula assexuada reprodutora das plantas.

Esporófilo - Folha dos fetos que suporta os esporângios.

Estelo - Parte interna do caule ou da raiz.

Gameta - Célula sexual haplóide (n) masculina ou feminina.

Glabro - Desprovido de pelos.

Filopódio - O mesmo que esporófilo.

Hidatódio - Poro aquífero ou glândula de água, geralmente localizado na folha.

Indusia - Nas folhas das pteridófitas, dependência do tecido epidérmico que reveste os soros, oferecendo proteção.

Limbo - Parte expandida da folha; folha propriamente dita.

Nervação - Conjunto ou forma de disposição das nervuras de uma folha.

Nervura - Cada um dos canalículos fibrovasculares que se encontram no limbo da folha e em outros órgãos de origem foliar e que se destina ao transporte de materiais absorvidos e de produtos assimilados.

Oosfera - Gameta feminino dos vegetais.

Pálea - Pequena protuberância escamiforme.

Paleado - Que contém páleas.

Paráfise - Filamento estéril, existente entre os órgãos reprodutores dos fungos e dos musgos e dos soros de algumas pteridófitas.

Pinatífida - Diz-se da folha de nervação penada cujas margens possuem recortes que chegam no máximo até a metade do limbo.

Pinulada - Diz-se da folha composta dividida em folíolos ou pínulas.

Soro - Nas pteridófitas, grupo de esporângios geralmente de forma hemisférica ou oblonga, localizado no esporófilo.




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