O ISOLADO ARQUIPÉLAGO DE SÃO PEDRO & SÃO PAULO



Aline Aguiar & Daniela Batista

                                                                                                             (HABITAT 85 - OUTUBRO 2009)


OBS.: TODOS OS ORGANISMOS MOSTRADOS NESTA REPORTAGEM
FORAM FOTOGRAFADOS NO ARQUIPÉLAGO DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO.




Panoramica_ASPSP



Panorâmica do Arquipélago de São Pedro & São Paulo. Foto: Aline Aguiar.

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A autora Daniela Batista em trabalho de campo no ASPSP. Foto: Aline Aguiar.


Nesta reportagem, duas biólogas enfrentam mais de 40 horas de viagem para documentar a rica biodiversidade marinha do mais remoto pedaço do Brasil, em pleno Oceano Atlântico.


O Arquipélago de São Pedro e São Paulo (ASPSP) consiste de um conjunto de ilhas rochosas remotas, distante cerca de 1.100 km da cidade de Natal (RN). É também considerado o ponto do Brasil mais perto da África, distando 1.824 km de Guiné Bissau. Localizado próximo à linha do Equador, ocupa uma área de aproximadamente 7.500 m2, distribuída em 15 ilhotas. A maior destas, conhecida como “Belmonte”, cuja elevação máxima é de 20 m acima do nível do mar, não ultrapassa 100 m de comprimento por 50 m de largura. Por essas características, é considerado como um dos menores e mais isolados entre os arquipélagos de ilhas oceânicas do mundo, além de ser o único no Atlântico que não possui origem vulcânica, mas sim plutônica, a partir do soerguimento tectônico que ocorreu após a sua exposição no fundo do oceano, há aproximadamente 12 milhões de anos.

O Arquipélago foi descoberto acidentalmente em 1511, quando um dos navios guiados por Dom Garcia de Noronha, que navegava do Brasil para a Ilha de São Tomé, chocou-se contra as rochas. E desde então, o ASPSP é considerado um local de interesse ecológico e, posteriormente, também estratégico para o território brasileiro. Até mesmo Darwin ficou impressionado com a região, em sua viagem no H.M.S. Beagle, nos anos de 1831 a 1836. O naturalista descreveu o ASPSP como “um pequeno ponto rochoso no oceano com quinze pés de altitude máxima, coberto por guano de atobás e viuvinhas, aratus, ausência de vegetais e liquens, grande riqueza de peixes e abundância de tubarões”.

Outras muitas excursões passaram por lá, mas somente em 1979 foi realizada a primeira expedição que possuía como objetivo principal o estudo da biologia do arquipélago, chamada The Cambridge Expedition. Foi durante essa expedição que ocorreram as primeiras coletas através de mergulhos autônomos em profundidades de até 60 m, que resultou na publicação de dados interessantíssimos sobre a abundância de tubarões, registro da fauna marinha, etc. Por exemplo, dois renomados pesquisadores ingleses, Roger Lubbock e Alasdair Edwards, descobriram e descreveram quatro espécies de peixes endêmicos durante a viagem: Stegastes sanctipauli, Enneanectes smithi, Anthias salmopunctatus e Prognathodes obliquus.


Piscina               As piscinas de maré na Ilha Belmonte são repletas de vida. Foto: Aline Aguiar.

               Por se tratar de um conjunto de pequenas ilhas, a maior parte da beleza do arquipélago está debaixo d’água. Apenas olhando algumas imagens subaquáticas, dá para entender porque é uma região que atrai a atenção tanto de pesquisadores quanto de mergulhadores autônomos. Há apenas uma enseada rasa, que aumenta de profundidade em direção à sua entrada, onde se abre uma imensidão azul, com mais de 4.000 m de profundidade de rochas escarpadas que agregam muitos animais. Mas a estadia no arquipélago e, principalmente, os mergulhos, são para poucos.

             A área é controlada pela Marinha do Brasil e as pessoas autorizadas a executar atividades no arquipélago são submetidas previamente a um treinamento específico. Esse treinamento é ministrado durante uma semana na Base Naval da Marinha, em Natal (RN) e inclui atividades como primeiros socorros, combate a incêndio, manuseio de botes infláveis, natação utilitária, simulação de abandono de embarcação ou da estação científica, e até mesmo uma teste de sobrevivência em alto mar. Além disso, cursos de mergulho avançado, resgate e primeiros socorros são obrigatórios para quem pretende desenvolver atividade de mergulho autônomo na região.

            Todo esse treinamento é necessário tendo em vista que o ASPSP possui características que o classificam como um dos locais brasileiros mais inóspitos para a vida humana. Dentre as principais dificuldades destacam-se a possibilidade de ocorrência de terremotos de média intensidade, ausência de água doce, distância da costa, ausência de praias para desembarque, superfície rochosa e irregular do solo, entre outras. Ainda assim, todo esse esforço vale muito! A ocupação humana e o desenvolvimento de pesquisas científicas nesse arquipélago rochoso foram motivados pela grande importância da região para o País, que envolve tanto aspectos estratégicos, como científicos, tecnológicos, políticos, sociais e logísticos.

Já em 1986 o ASPSP era considerado de interesse estratégico nacional, sendo declarado como Área de Proteção Ambiental. Mais tarde, no ano de 1996, a Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (CIRM) aprovou a criação do Programa Arquipélago de São Pedro e São Paulo (PROARQUIPÉLAGO), culminando no início imediato de pesquisas, bem como na inauguração de uma estação científica em 1998, consolidando assim a habitação permanente da região. Com a caracterização de habitação, o Brasil assegurou uma área de 200 milhas de raio ao redor do arquipélago, aumentando em 450.000 km2 a Zona Economia Exclusiva (ZEE) do País. Dentro dos limites da ZEE, o Brasil é soberano na exploração, aproveitamento, conservação e gestão dos recursos naturais existentes.

Atualmente o PROARQUIPÉLAGO tem coordenação compartilhada pela Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do mar (Sercim), responsável por toda logística de ocupação e pesquisa na região, e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), instituição financiadora do programa.

Uma vez aprovado o projeto e feito o treinamento, é só o pesquisador esperar a vez e seguir viagem. O traslado para ASPSP dura aproximadamente 48 horas de navegação a partir de Fernando de Noronha, e é feito através de pequenos barcos de pesca, o que torna o trajeto ainda mais cansativo. A outra opção, para os pesquisadores mais corajosos, é sair de Natal numa viagem que demora cerca de 70 horas. Cada expedição dura uns 30 dias, dos quais 15 são de permanência no arquipélago e o restante para deslocamento.

barco



 O barco pesqueiro Transmar I

 vai regularmente ao Arquipélago, e

 também faz o traslado dos

 pesquisadores vindos de Natal.

 Foto: Daniela Batista.



A estação científica, localizada na ilha Belmonte, comporta no máximo quatro pessoas. Toda comida e água potável são fornecidas pelo Programa e levadas pela equipe da vez. Uma das partes mais difíceis da expedição é o desembarque dos mantimentos e material de pesquisa na ilha com o uso de bote inflável. Dependendo das condições de maré e ondas, esta tarefa pode se tornar muito complicada e arriscada.

          Para manter a base em pleno funcionamento, placas solares e um gerador garantem a energia da casa. Os pesquisadores também contam com facilidades como dessalinizador e equipamentos de comunicação, que incluem telefone e, atualmente, até acesso a internet. Além da base científica, também se encontra o farol, situado no ponto mais alto ilha Belmonte.


Farol





  Ilha Belmonte com o Farol. Foto: Aline Aguiar.         

            A não ser em situações atípicas, a ilha nunca fica desabitada e o grupo de pesquisadores só é autorizado a deixar a estação no momento em que é rendido pela equipe da expedição seguinte.  Durante todo período, o barco de pesca, que fez o traslado, permanece na área para prestar apoio. No retorno a Natal, os pesquisadores entregam um relatório de expedição às autoridades da Marinha na Base Naval de Natal e são liberados.

Diversos projetos de pesquisa em diferentes áreas do conhecimento já foram realizados desde o início do Programa. E atualmente os resultados destes projetos são debatidos em workshops específicos sobre o ASPSP.

Como resultados de algumas pesquisas, sabe-se que arquipélago é praticamente desprovido de qualquer vegetação terrestre. A influência constante de borrifos de água salgada parece limitar o estabelecimento de plantas vasculares. No entanto, já existe registro a partir de imagens de uma espécie, aparentemente Cannavalia obstusifolia, no ponto mais alto da ilha Belmonte.

Quanto à fauna, habitam permanentemente sobre as rochas uma pequena população de atobás Sula leucogaster, bem como viuvinhas Anous stolidus e A. minutus, numa acirrada disputa por espaço. Algumas outras espécies de aves podem ocupar também as ilhas, mas apenas por alguns períodos no ano. Sobre os ninhais ocorre o caranguejo Grapsus grapsus, e além desta espécie, sobre as rochas também estão presentes o caranguejo-da-arrebentação Plagusia depressa e um pequeno caranguejo chamado Pachygrapsus corrugatus.


sula









  Atobá marrom Sula leucogaster é uma das aves que nidificam no Arquipélago. Foto: Daniela Batista.


Embaixo d’água já identificaram até o momento 85 espécies de peixes, das quais seis são endêmicas: Anthias salmopunctatus (família Serranidae); Prognathodes obliquus (Chaetodontidae); Stegastes sanctipauli e Stegastes rocasensis (Pomacentridae) — esta espécie também ocorre no atol das Rocas e no arquipélago de Fernando de Noronha —, Enneanectes smithi (Tripterygiidae) e Emblemariopsis sp. (Chaenopsidae).



sanctipauli







Stegastes sanctipauli. Espécie endêmica do ASPSP. Foto: João Luiz Gasparini.




Cangulo







Cangulo Cantherhines macrocerus. Foto: Aline Aguiar.

Moreia







                 Moreia Muraena pavonina. Foto: Aline Aguiar.

Bodianus_insularis











Bodianus insularis. Foto: Aline Aguiar.

A ocorrência de anomalias cromáticas em 5% da população do peixe-anjo Holacanthus ciliaris é outro um fato bastante interessante observado no arquipélago. São descritos sete padrões de cores para esse peixe, incluindo um totalmente branco! Há também outro caso de anomalia cromática, num indivíduo presumivelmente semi-albino da espécie Chromis multilineata, conhecida como tesourinha.


   – Anomalias cromáticas em Holacanthus ciliaris –

ciliaris_amarelo






  Holacanthus ciliaris (padrão normal). Foto: João Luiz Gasparini.

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  Holacanthus ciliaris
(padrão azul). Foto: João Luiz Gasparini.


Ciliaris_branco




  Holacanthus ciliaris (padrão branco). Não se trata de albinismo. Foto: João Luiz Gasparini.


Com relação aos peixes pelágicos, o ASPSP está na rota migratória de algumas espécies de alto valor econômico, como é o caso da albacora-laje Thunnus albacares e do peixe-rei Elagatis bippinulata, o que torna a região muito visitada por barcos pesqueiros. Alguns tubarões também são pescados em abundância, como por exemplo, o tubarão lombo-preto Carcharinus falciformis, o tubarão galha-branca oceânico C. longimanus e  o tubarão azul Prionace glauca. Também são capturados no entorno, o xaréu preto Caranx lugubris e o peixe voador Cypselurus cyanopterus, sendo este último a principal isca usada pelos pescadores.

Animais com potencial econômico na indústria farmacêutica também já foram registrados por pesquisadores na região. Por exemplo, uma espécie de esponja, Discodermia dissoluta, é fonte das discodermolidas, substância com forte atividade antitumoral, hoje em fase de estudos clínicos para chegar ao mercado. Até então, esta espécie só tinha sido encontrada em águas profundas do Caribe. Há 26 espécies de esponjas identificadas até momento no ASPSP, sendo cinco, novas para a ciência.

Em meio a tanta diversidade, a moréia Muraena pavonina e o polvo Octopus insularis são espécies fáceis de serem observadas. São abundantes os cnidários, como o baba-de-boi Palythoa caribaeorum e o coral solitário Scolymia wellsi, encontrado principalmente a partir dos 35 m, além de outras espécies. Entre os poliquetos, o verme-de-fogo Hermodice carunculata também ocorre na região.


polvo



Octopus insularis. Foto: Aline Aguiar.

Tartaruga

  Tartaruga-de-pente Eretmochelys imbricata é vista alimentando-se de algas e esponjas. Foto: Aline Aguiar.

            Quanto à flora marinha, 38 táxons já foram identificados até o momento, sendo o maior percentual representado pelas rodofíceas (50%), seguido pelas clorofíceas (29%) e feofíceas (21%). Os gêneros Laurencia e Jania são os mais representativos. No entanto, o que chama a atenção é a alga Caulerpa racemosa, bastante comum até os 60 m, que serve de abrigo para animais como moréias e alimento para peixes herbívoros e onívoros.

alga








  Alga Caulerpa racemosa é bastante comum até 60 metros de profundidade. Foto: Aline Aguiar.

Outros animais que são comuns na região e fazem a alegria dos pesquisadores são os golfinhos nariz-de-garrafa Tursiops truncatus, tartarugas-de-pente Eretmochelys imbricata, raias jamantas Mobula tarapacana e o tubarão-baleia Rhincodon typus.

Esse cenário peculiar e único faz com que todo o esforço e cansaço do trabalho e do trajeto sejam esquecidos ao final da expedição, e ao desembarcar de volta, com toda certeza, o pesquisador mantém aquelas imagens guardadas na memória. Quem sabe ele não terá a oportunidade de retornar?

           Essa rotina de expedições no ASPSP não só gera novos conhecimentos científicos, mas também realiza sonhos, e principalmente, garante a soberania brasileira em águas oceânicas.  

Dyctiota_sp












  Alga Dyctiota sp. Foto: Aline Aguiar.


AGRADECIMENTOS

Ao Sercim/Marinha do Brasil pelo apoio logístico e pela aprovação do projeto; ao CNPq pelo financiamento; Carlos Rangel pela identificação dos peixes. Ao ictiólogo João Luiz Gasparini pelas importantes fotos complementares e sugestões ao manuscrito.

 

Bibliografia Consultada

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