OBS.: TODOS OS ORGANISMOS MOSTRADOS NESTA REPORTAGEM FORAM FOTOGRAFADOS NO ARQUIPÉLAGO DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO.
Panorâmica do Arquipélago de São Pedro & São Paulo. Foto: Aline Aguiar.
A autora Daniela Batista em trabalho de campo no ASPSP. Foto: Aline Aguiar.
Nesta reportagem, duas biólogas enfrentam mais de 40 horas de viagem para documentar a rica biodiversidade marinha do mais remoto pedaço do Brasil, em pleno Oceano Atlântico.
O Arquipélago de São Pedro e São Paulo (ASPSP) consiste de um conjunto de ilhas
rochosas remotas, distante cerca de 1.100 km da cidade de Natal (RN). É também
considerado o ponto do Brasil mais perto da África, distando 1.824 km de Guiné
Bissau. Localizado próximo à linha do Equador, ocupa uma área de
aproximadamente 7.500 m2, distribuída em 15 ilhotas. A maior destas,
conhecida como Belmonte, cuja elevação máxima é de 20 m acima do nível do mar,
não ultrapassa 100 m de comprimento por 50 m de largura. Por essas
características, é considerado como um dos menores e mais isolados entre os
arquipélagos de ilhas oceânicas do mundo, além de ser o único no Atlântico que
não possui origem vulcânica, mas sim plutônica, a partir do soerguimento tectônico
que ocorreu após a sua exposição no fundo do oceano, há aproximadamente 12
milhões de anos.
O Arquipélago foi descoberto
acidentalmente em 1511, quando um dos navios guiados por Dom Garcia de Noronha,
que navegava do Brasil para a Ilha de São Tomé, chocou-se contra as rochas. E
desde então, o ASPSP é considerado um local de interesse ecológico e,
posteriormente, também estratégico para o território brasileiro. Até mesmo
Darwin ficou impressionado com a região, em sua viagem no H.M.S. Beagle, nos
anos de 1831 a 1836. O naturalista descreveu o ASPSP como um pequeno ponto
rochoso no oceano com quinze pés de altitude máxima, coberto por guano de
atobás e viuvinhas, aratus, ausência de vegetais e liquens, grande riqueza de
peixes e abundância de tubarões.
Outras muitas excursões passaram por lá,
mas somente em 1979 foi realizada a primeira expedição que possuía como
objetivo principal o estudo da biologia do arquipélago, chamada The
Cambridge Expedition. Foi durante
essa expedição que ocorreram as primeiras coletas através de mergulhos
autônomos em profundidades de até 60 m, que resultou na publicação de dados
interessantíssimos sobre a abundância de tubarões, registro da fauna marinha,
etc. Por exemplo, dois renomados pesquisadores ingleses, Roger Lubbock e
Alasdair Edwards, descobriram e descreveram quatro espécies de peixes endêmicos
durante a viagem: Stegastes sanctipauli, Enneanectes smithi, Anthias
salmopunctatus e Prognathodes
obliquus.
As piscinas de maré na Ilha Belmonte são repletas de vida. Foto: Aline Aguiar.
Por se tratar
de um conjunto de pequenas ilhas, a maior parte da beleza do arquipélago está
debaixo dágua. Apenas olhando algumas imagens subaquáticas, dá para entender
porque é uma região que atrai a atenção tanto de pesquisadores quanto de
mergulhadores autônomos. Há apenas uma enseada rasa, que aumenta de
profundidade em direção à sua entrada, onde se abre uma imensidão azul, com
mais de 4.000 m de profundidade de rochas escarpadas que agregam muitos
animais. Mas a estadia no arquipélago e, principalmente, os mergulhos, são para
poucos.
A área é
controlada pela Marinha do Brasil e as pessoas autorizadas a executar
atividades no arquipélago são submetidas previamente a um treinamento
específico. Esse treinamento é ministrado durante uma semana na Base Naval da
Marinha, em Natal (RN) e inclui atividades como primeiros socorros, combate a
incêndio, manuseio de botes infláveis, natação utilitária, simulação de
abandono de embarcação ou da estação científica, e até mesmo uma teste de
sobrevivência em alto mar. Além disso, cursos de mergulho avançado, resgate e
primeiros socorros são obrigatórios para quem pretende desenvolver atividade de
mergulho autônomo na região.
Todo esse
treinamento é necessário tendo em vista que o ASPSP possui características que
o classificam como um dos locais brasileiros mais inóspitos para a vida humana.
Dentre as principais dificuldades destacam-se a possibilidade de ocorrência de
terremotos de média intensidade, ausência de água doce, distância da costa,
ausência de praias para desembarque, superfície rochosa e irregular do solo,
entre outras. Ainda assim, todo esse esforço vale muito! A ocupação humana e o
desenvolvimento de pesquisas científicas nesse arquipélago rochoso foram
motivados pela grande importância da região para o País, que envolve tanto
aspectos estratégicos, como científicos, tecnológicos, políticos, sociais e
logísticos.
Já em 1986 o ASPSP era considerado de interesse
estratégico nacional, sendo declarado como Área de Proteção Ambiental. Mais
tarde, no ano de 1996, a Comissão Interministerial para os Recursos do Mar
(CIRM) aprovou a criação do Programa Arquipélago de São Pedro e São Paulo
(PROARQUIPÉLAGO), culminando no início imediato de pesquisas, bem como na
inauguração de uma estação científica em 1998, consolidando assim a habitação
permanente da região. Com a caracterização de habitação, o Brasil assegurou uma
área de 200 milhas de raio ao redor do arquipélago, aumentando em 450.000 km2
a Zona Economia Exclusiva (ZEE) do País. Dentro dos limites da ZEE, o Brasil é
soberano na exploração, aproveitamento, conservação e gestão dos recursos
naturais existentes.
Atualmente o PROARQUIPÉLAGO tem coordenação compartilhada pela
Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do mar (Sercim),
responsável por toda logística de ocupação e pesquisa na região, e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), instituição financiadora do programa.
Uma vez aprovado o projeto e feito o
treinamento, é só o pesquisador esperar a vez e seguir viagem. O traslado para
ASPSP dura aproximadamente 48 horas de navegação a partir de Fernando de
Noronha, e é feito através de pequenos barcos de pesca, o que torna o trajeto
ainda mais cansativo. A outra opção, para os pesquisadores mais corajosos, é
sair de Natal numa viagem que demora cerca de 70 horas. Cada expedição dura uns
30 dias, dos quais 15 são de permanência no arquipélago e o restante para
deslocamento.
O barco pesqueiro Transmar I
vai regularmente ao Arquipélago, e
também faz o traslado dos
pesquisadores vindos de Natal.
Foto: Daniela Batista.
A estação científica, localizada na ilha Belmonte, comporta no
máximo quatro pessoas. Toda comida e água potável são fornecidas pelo Programa
e levadas pela equipe da vez. Uma das partes mais difíceis da expedição é o
desembarque dos mantimentos e material de pesquisa na ilha com o uso de bote
inflável. Dependendo das condições de maré e ondas, esta tarefa pode se tornar
muito complicada e arriscada.
Para manter a
base em pleno funcionamento, placas solares e um gerador garantem a energia da
casa. Os pesquisadores também contam com facilidades como dessalinizador e
equipamentos de comunicação, que incluem telefone e, atualmente, até acesso a
internet. Além da base científica, também se encontra o farol, situado no ponto
mais alto ilha Belmonte.
Ilha Belmonte com o Farol. Foto: Aline Aguiar.
A não ser em
situações atípicas, a ilha nunca fica desabitada e o grupo de pesquisadores só
é autorizado a deixar a estação no momento em que é rendido pela equipe da
expedição seguinte.Durante todo
período, o barco de pesca, que fez o traslado, permanece na área para prestar
apoio. No retorno a Natal, os pesquisadores entregam um relatório de expedição
às autoridades da Marinha na Base Naval de Natal e são liberados.
Diversos projetos de pesquisa em
diferentes áreas do conhecimento já foram realizados desde o início do
Programa. E atualmente os resultados destes projetos são debatidos em workshops específicos sobre o ASPSP.
Como resultados de algumas pesquisas,
sabe-se que arquipélago é praticamente desprovido de qualquer vegetação
terrestre. A influência constante de borrifos de água salgada parece limitar o
estabelecimento de plantas vasculares. No entanto, já existe registro a partir
de imagens de uma espécie, aparentemente Cannavalia obstusifolia, no ponto mais alto da ilha Belmonte.
Quanto à fauna, habitam permanentemente
sobre as rochas uma pequena população de atobás Sula leucogaster, bem como viuvinhas Anous stolidus e A. minutus, numa acirrada disputa por espaço. Algumas outras
espécies de aves podem ocupar também as ilhas, mas apenas por alguns períodos
no ano. Sobre os ninhais ocorre o caranguejo Grapsus grapsus, ealém desta espécie, sobre as rochas também
estão presentes o caranguejo-da-arrebentação Plagusia depressa e um pequeno caranguejo chamado Pachygrapsus corrugatus.
Atobá marrom Sula leucogaster é uma das aves que nidificam no Arquipélago. Foto: Daniela Batista.
Embaixo dágua já identificaram até o
momento 85 espécies de peixes, das quais seis são endêmicas: Anthiassalmopunctatus (família Serranidae); Prognathodes obliquus (Chaetodontidae); Stegastessanctipauli e Stegastes rocasensis
(Pomacentridae) esta espécie também ocorre no atol das Rocas e no arquipélago
de Fernando de Noronha , Enneanectes smithi (Tripterygiidae) e Emblemariopsis sp. (Chaenopsidae).
Stegastes sanctipauli. Espécie endêmica do ASPSP. Foto: João Luiz Gasparini.
A ocorrência de anomalias cromáticas em
5% da população do peixe-anjo Holacanthusciliaris é outro um fato
bastante interessante observado no arquipélago. São descritos sete padrões de
cores para esse peixe, incluindo um totalmente branco! Há também outro caso de
anomalia cromática, num indivíduo presumivelmente semi-albino da espécie Chromis
multilineata, conhecida como
tesourinha.
– Anomalias cromáticas em Holacanthus ciliaris –
Holacanthus ciliaris (padrão normal). Foto: João Luiz Gasparini.
Holacanthus ciliaris (padrão azul). Foto: João Luiz Gasparini.
Holacanthus ciliaris (padrão branco). Não se trata de albinismo. Foto: João Luiz Gasparini.
Com relação aos peixes pelágicos, o ASPSP está na rota migratória de
algumas espécies de alto valor econômico, como é o caso da albacora-laje Thunnus
albacares e do peixe-rei Elagatis
bippinulata, o que torna a região
muito visitada por barcos pesqueiros. Alguns tubarões também são pescados em
abundância, como por exemplo, o tubarão lombo-preto Carcharinus falciformis, otubarãogalha-branca oceânico C.
longimanus eo tubarão azul Prionace
glauca. Também são capturados no
entorno, oxaréu preto Caranx
lugubris e o peixe voador Cypselurus
cyanopterus, sendo este último a
principal isca usada pelos pescadores.
Animais com potencial econômico na
indústria farmacêutica também já foram registrados por pesquisadores na região.
Por exemplo, uma espécie de esponja, Discodermia dissoluta, é fonte das discodermolidas, substância com forte
atividade antitumoral, hoje em fase de estudos clínicos para chegar ao mercado.
Até então, esta espécie só tinha sido encontrada em águas profundas do Caribe.
Há 26 espécies de esponjas identificadas até momento no ASPSP, sendo cinco,
novas para a ciência.
Em meio a tanta diversidade, a moréia Muraena
pavonina e o polvo Octopus
insularis são espécies fáceis de
serem observadas. São abundantes os cnidários, como o baba-de-boi Palythoa
caribaeorum e o coral solitário Scolymia
wellsi,encontrado principalmente a partir dos 35 m, além de
outras espécies. Entre os poliquetos, o verme-de-fogo Hermodice carunculata também ocorre na região.
Octopus insularis. Foto: Aline Aguiar.
Tartaruga-de-pente Eretmochelys imbricata é vista alimentando-se de algas e esponjas. Foto: Aline Aguiar.
Quanto à flora
marinha, 38 táxons já foram identificados até o momento, sendo o maior
percentual representado pelas rodofíceas (50%), seguido pelas clorofíceas (29%)
e feofíceas (21%). Os gêneros Laurencia e Jania são os mais representativos.
No entanto, o que chama a atenção é a alga Caulerpa racemosa, bastante comum até os 60 m, que serve de abrigo
para animais como moréias e alimento para peixes herbívoros e onívoros.
Alga Caulerpa racemosa é bastante comum até 60 metros de profundidade. Foto: Aline Aguiar.
Outros animais que são comuns na região e fazem a alegria dos
pesquisadores são os golfinhos nariz-de-garrafa Tursiops truncatus, tartarugas-de-pente Eretmochelys imbricata, raias jamantas Mobula tarapacana e o tubarão-baleia Rhincodon typus.
Esse cenário peculiar e único faz com que
todo o esforço e cansaço do trabalho e do trajeto sejam esquecidos ao final da
expedição, e ao desembarcar de volta, com toda certeza, o pesquisador mantém
aquelas imagens guardadas na memória. Quem sabe ele não terá a oportunidade de
retornar?
Essa rotina de
expedições no ASPSP não só gera novos conhecimentos científicos, mas também
realiza sonhos, e principalmente, garante a soberania brasileira em águas
oceânicas.
Alga Dyctiota sp. Foto: Aline Aguiar.
AGRADECIMENTOS
Ao Sercim/Marinha do Brasil pelo apoio logístico e pela aprovação do projeto; ao CNPq pelo financiamento; Carlos Rangel pela identificação dos peixes. Ao ictiólogo João Luiz Gasparini pelas importantes fotos
complementares e sugestões ao manuscrito.
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