PEIXES & CAVERNAS

 


Eleonora Trajano 

                                                                                                                                                          (HABITAT 72  - NOVEMBRO 2002)

 


Encantado












Poço Encantado, na Chapada Diamantina (BA), onde foi encontrado um gênero novo de bagre troglóbio
(ver foto abaixo). Foto: Ricardo M. Correia.



Bagre_Diamantina


















 Novo gênero de bagre (Heptapterinae) cego descoberto no Poço Encantado (BA). Foto: Marcelo Notare.



O meio subterrâneo, do qual fazem parte as cavernas, apresenta particularidades notáveis: ausência total de luz, determinando a inexistência de plantas clorofiladas e a impossibilidade do uso da visão, e tendência a estabilidade ambiental. Grande parte do alimento é importada da superfície, carreada pela água ou por animais que penetram no meio subterrâneo, geralmente configurando-se uma situação de escassez alimentar.

 

Organismos capazes de viver em tais condições colonizam o habitat hipógeo e, uma vez isolados da superfície (meio epígeo) por algum evento geológico ou climático, podem se especializar a ponto de se tornarem incapazes de retornar à vida epígea de seus ancestrais. Tais organismos são chamados troglóbios ou cavernícolas obrigatórios. Dentre as várias modificações morfológicas, fisiológicas e comportamentais que apresentam, destacam-se a redução da pigmentação melânica e dos órgãos visuais. Nas cavernas, encontram-se espécies normais, que não passaram por aquele isolamento (troglófilos, que podem completar o ciclo de vida tanto nas cavernas como no meio epígeo, e trogloxenos, que devem sair periodicamente para completar esse ciclo), ao lado de troglóbios em diferentes estágios de perda dos olhos e da pigmentação.

 

A maioria dos cavernícolas pertence a grupos que já vivem no meio epígeo em situações similares às observadas nas cavernas: animais com atividade noturna, hábitos criptobióticos e dieta não especializada. Entre os peixes, grupos como os Siluriformes, predominantemente noturnos e quimio-orientados, são bons cavernícolas em potencial, e incluem populações troglóbias em vários continentes. Isto não significa que peixes como os Characiformes, mais diurnos e visualmente orientados, não possam se tornar cavernícolas, apenas que a possibilidade é menor, uma vez que implicaria em mudanças maiores nos seus hábitos de vida.

 

Mesmo entre os Characiformes, em geral os troglóbios originaram-se de espécies com alguma predisposição para a vida subterrânea: é o caso das espécies troglóbias do gênero Astyanax da serra de El Abra (México), intensamente estudadas — quase 200 publicações até 1971 (Mitchell et al., 1977) —, cuja espécie epígea aparentada, A. mexicanus de Philippi, 1853, apresenta atividade crepuscular, e não diurna como é comum entre os lambaris, e comportamento reprodutivo quimicamente orientado.



Astyanax

 













 Astyanax sp., do México. Há várias décadas este caracídeo cego de caverna

 vem sendo mantido e reproduzido por aquaristas de todo o mundo.

 Foto: Marcelo Notare.



No Brasil, já foram encontradas várias espécies de peixes com especializações para a vida subterrânea, a maioria Siluriformes (Trajano, 1997a, Trajano & Bichuette, dados não publicados): os pimelodídeos Heptapterinae — Pimelodella kronei (Ribeiro, 1907), do Alto Vale do Ribeira (SP) [o outro bagre troglóbio citado na literatura para São Paulo, Caecorhamdella brasiliensis Borodin, 1927, é, na realidade, sinônimo de P. kronei (Trajano & Britski, 1992)]; uma nova espécie de Pimelodella da região de São Domingos (GO); Taunayia sp., da região de Campo Formoso (norte da Bahia); um novo gênero da Chapada Diamantina (BA) (citado em algumas publicações como cf. Rhamdella sp. e Imparfinis sp.); e Phreatobius cisternarum Goeldi, 1904, habitante do meio intersticial (portanto, não-cavernícola) na região do delta do Amazonas (PA/AM); os tricomicterídeos Trichomycterus itacarambiensis Trajano & Pinna, 1996, do norte de Minas Gerais; duas espécies não-descritas de Trichomycterus, uma da região da Serra da Bodoquena (MS) e outra do sul da Bahia; e duas ou mais espécies não-descritas de Ituglanis, de São Domingos (GO) (M. E. Bichuette, comun. pess.); e os loricariídeos Ancistrus cryptophthalmus Reis, 1987, de São Domingos (GO) e Ancistrus formoso Sabino & Trajano, 1997, do Mato Grosso do Sul. São ainda conhecidos peixes-elétricos troglóbios: Eigenmannia vicentespelaea Triques, 1996 (Gymnotiformes: Sternopygidae), também de São Domingos (GO), e o caracídeo Stygichthys typhlops Brittan & Bohlke, 1965, coletada por ocasião da abertura de poço artesiano em Jaiba (MG). Note-se que novas espécies são descobertas a cada ano em diferentes áreas cársticas do Brasil, que assim se apresenta como um dos países de maior riqueza de peixes troglóbios em todo o mundo, ao lado da China, México e países do Sudeste Asiático.



Os bagres cegos de Iporanga

 

Pimelodella kronei foi o primeiro cavernícola troglóbio descrito para o Brasil. Os assim chamados bagres cegos de Iporanga foram coletados em caverna desse município pelo espeleólogo alemão Ricardo Krone que, no século passado, realizou os primeiros estudos espeleológicos intensivos no Vale do Alto Ribeira, sul de São Paulo (Krone, 1909). Trata-se do cavernícola brasileiro mais estudado até o momento.



kronei_agonistico















 Pimelodella kronei, do Vale do Ribeira (SP) – comportamento agonístico.

 Foto: João Allievi.



transitoria














 Pimelodella transitoria, do Vale do Ribeira (SP) – espécie troglófila.

 Foto: José Sabino.



Na década de 40, o geneticista Crodowaldo Pavan fez sua tese de Doutorado sobre esses bagres cegos, caracterizando morfologicamente as duas populações então conhecidas e comparando-as com a provável espécie ancestral, o mandi oculado e pigmentado Pimelodella transitoria (Ribeiro, 1912), além de efetuar algumas observações sobre seu comportamento (Pavan, 1945). Quarenta anos mais tarde decidi estudar esses interessantes cavernícolas que deste modo foram objeto de uma segunda tese de Doutorado, enfocando a ecologia, o comportamento e a morfologia comparada de Pimelodella kronei e P. transitoria (Trajano,1987; 1989a; 1989b; 1991a; 1991b; 1994; 1997b).

 

Pimelodella kronei é um bagre de porte médio (atinge, no máximo, 20 centímetros), encontrado até o momento em cinco cavernas do Alto Ribeira, onde convive com P. transitoria, espécie troglófila. Pimelodella kronei é o que se poderia chamar de troglóbio recente, pois apresenta variabilidade individual nas características relacionadas à vida subterrânea, indicando que o isolamento em cavernas foi recente, não tendo tempo evolutivo suficiente para a regressão total de caracteres como olhos e pigmentação. Assim, são observados desde indivíduos despigmentados até outros tão pigmentados quanto P. transitoria, e, embora a maioria tenha olhos muito reduzidos, não visíveis externamente, não é raro encontrar-se animais com olhos reduzidos porém ainda externos ou até um ou outro indivíduo com olhos tão desenvolvidos quanto os da espécie ancestral. Com relação às demais características morfológicas externas, as duas espécies são praticamente indistinguíveis, notando-se apenas uma tendência à redução do espinho da nadadeira dorsal nos bagres cegos, estrutura de defesa que teria perdido sua função no ambiente cavernícola, onde não há predadores de peixes.

 

Modificações comportamentais são bastante evidentes e incluem a perda, em Pimelodella kronei, dos hábitos criptobióticos típicos da espécie aparentada. Pimelodella transitoria é um bagre tímido, altamente fotofóbico, que passa a maior parte do tempo escondido em tocas, exibindo reações de medo ante quase todos os estímulos. Pimelodella kronei, por sua vez, parece estar em meio a um processo de perda desses hábitos criptobióticos — os bagres cegos são pouco ou nada fotofóbicos e passam boa parte do tempo explorando ativamente todo o ambiente, não somente o fundo (o que seria típico da maioria dos pimelodídeos, em geral animais bentônicos) como também a coluna da água e a superfície; como outros peixes troglóbios, reage aos estímulos de forma positiva, orientando-se em direção aos mesmos, aparentemente interpretando-os sempre como sinal de alimento. Tal comportamento aumentaria a chance do animal encontrar alimento em um ambiente onde os nutrientes são escassos e onde não há ameaça de predadores (Trajano, 1989a).

 

Também relacionado à escassez de alimentos está o hábito alimentar generalizado e particularmente oportunista dos bagres cegos, que comem todo e qualquer tipo de invertebrado (insetos, crustáceos, moluscos, anelídeos e, até mesmo, aracnídeos) que viva na água ou que venha a cair na mesma, além de detritos e guano. Um hábito alimentar generalista já está presente em Pimelodella transitoria (os pimelodídeos em geral são carnívoros), constituindo mais um pré-requisito à vida cavernícola do que propriamente uma especialização decorrente da mesma.

 

Há comportamentos que sofreram modificações em outros peixes troglóbios [e. g. Astyanax spp., do México, e os Amblyopsidae das cavernas dos Estados Unidos (Parzefall, 1986)], e que, no entanto, mantiveram-se em Pimelodella kronei. É o caso do comportamento agressivo, que sofreu regressão em várias espécies cavernícolas, mas que se manteve nos bagres cegos de Iporanga provavelmente devido à alta competição por alimento. Estes são animais bastante agressivos, que apresentam dominância linear baseada primariamente no tamanho, embora a posse do território e um alto grau individual de força e/ou agressividade possa também influenciar o resultado dos confrontos, fazendo com que peixes um pouco menores, porém muito agressivos, fortes, ou residentes na área de confronto, possam vir a ganhar. Uma vez estabelecida a hierarquia, o subordinado passa a evitar o dominante, mas não os peixes desconhecidos, o que demonstra a existência de reconhecimento individual (Trajano, 1991b).

 

Pimelodella kronei apresenta um complexo sistema de comunicação química através de substâncias liberadas pelos indivíduos. Essas substâncias, transportadas pela água e percebidas à distância, permitem aos bagres cegos identificar a presença de outros bagres cegos nas proximidades, mas não informam sobre o sexo e a posição hierárquica dos mesmos. Somente quando estão muito próximos ou em contato é que são capazes de se reconhecer individualmente (Trajano, 1989b).

 

Ao que tudo indica, o reconhecimento químico baseia-se no olfato. Ora, sabe-se que determinados poluentes, como detergentes e metais pesados, destroem o epitélio olfativo dos peixes (Cancalon, 1982), o que levaria a uma desorganização de todo o sistema social de animais como os bagres cegos, resultando em lutas constantes; as lutas são muito estressantes e de alto custo energético, podendo romper o frágil equilíbrio em que se encontram esses cavernícolas. A poluição de origem química, verificada em algumas das cavernas onde vive Pimelodella kronei, é um dos graves perigos a que está exposta a espécie.

 

Em função da já mencionada escassez alimentar e da restrição espacial do habitat, as populações de bagres cegos são pequenas. O crescimento individual é muito lento (animais adultos crescem menos de 1,0mm por mês), a longevidade é alta (podem viver de 10 a 15 anos) e a reprodução é pouco frequente, configurando-se o que se denomina ciclo de vida do tipo K, adaptação muito comum entre os troglóbios em geral (Trajano, 1991a). Como consequência, qualquer declínio populacional causado por perturbações, como alteração no aporte de alimento (e. g. por desmatamento do entorno da caverna ou modificações no regime hídrico) e coletas intensivas, a que estão efetivamente sujeitos os bagres cegos, pode ocasionar a extinção da espécie.

 

Devido a essa vulnerabilidade, Pimelodella kronei está sendo incluída na lista oficial de espécies ameaçadas de extinção, juntamente com outros peixes troglóbios brasileiros.


 

Cavernícolas de Goiás e da Bahia

 

Apesar do troglóbio mais famoso do País viver nas cavernas de São Paulo, é na região de São Domingos (GO) que se encontra a fauna mais diversificada de peixes cavernícolas, incluindo tanto troglóbios como troglófilos e trogloxenos. Essa diversidade pode estar relacionada em parte com o tamanho das cavernas de São Domingos, em média bem maiores que as do Vale do Ribeira, e em parte com o fato de seus rios pertencerem à Bacia Amazônica, conhecida por sua diversidade ictiológica.

 

A rica fauna de peixes não-troglóbios registrados nas cavernas de São Domingos compreende, até o momento, 21 espécies, sendo cinco Characiformes, 10 Siluriformes (seis heptapteríneos e três loricariídeos), cinco Gymnotiformes e um Cichlidae, todos com olhos e pigmentação melânica cutânea aparentemente tão desenvolvidos como o observado nos exemplares epígeos (Bichuette & Trajano, dados não publicados).

 

Mais notável ainda é a fauna de peixes do sistema do Rio São Vicente, que inclui pelo menos cinco espécies troglóbias: Ancistrus cryptophthalmus; Ituglanis spp. [no mínimo duas, possivelmente quatro espécies  (Bichuette, M.E. comun. pess.)]; Pimelodella sp.; e Eigenmannia vicentespelaea. Na caverna Passa Três encontramos cascudos Ancistrus cryptophthalmus e bagres Ituglanis sp. vivendo sintopicamente nos trechos de corredeiras. Nessa e em outras cavernas da região, A. cryptophthalmus forma populações bastante elevadas, atingindo densidades de 0,5 (Passa Três) a 0,9 indivíduos por metro quadrado (Angélica) (Trajano, 2001), fato que pode estar relacionado com o hábito alimentar detritívoro desses cascudos, que ingerem lodo, abundante na caverna (recurso alimentar não limitante). Já os bagres Ituglanis são menos comuns, alimentando-se de pequenos invertebrados (recurso limitante). Dessa forma, não haveria competição por alimento, o que explica a convivência entre as duas espécies troglóbias.



Ancistrus_cryptophtalmus

 













 Ancistrus cryptophthalmus, do sistema do Rio São Vicente (GO).

 Foto: Ronaldo Novelli.



Ituglanis














 Ituglanis sp., também do sistema do Rio São Vicente (GO). Foto: Ronaldo Novelli.



Itugl_com_olhos



 Ituglanis sp., – diferentes graus de regressão ocular.

 Fotos: Ronaldo Novelli.



Explorações ictiológicas em cavernas da Bahia revelaram uma fauna que, embora muito menos diversificada, destaca-se por sua especialização. As duas espécies troglóbias de Heptapterinae, uma ainda não descrita pertencente a um novo gênero, da Chapada Diamantina, e Taunayia sp., de Campo Formoso, ambas totalmente anoftálmicas e despigmentadas, estão entre os peixes troglóbios brasileiros mais modificados.



Taunayia














 Taunayia sp., de Campo Formoso (BA). Foto: José Sabino.



Exemplares das espécies troglóbias acima mencionadas foram mantidos vivos para estudo em laboratório, o que vem ampliando de modo substancial o conhecimento acerca dos peixes cavernícolas brasileiros. 

 

De um modo geral, os grupos epígeos aparentados a essas espécies troglóbias (e.g. Pimelodella transitoria, Imparfinis minutus e outros heptap-teríneos epígeos, muitos tricomicterídeos, Ancistrus spp.) apresentam hábitos noturnos, criptobióticos (escondem-se durante o dia) e são claramente fotofóbicos. A comparação com estes epígeos sugere que as espécies troglóbias por nós estudadas sofreram uma redução nesses hábitos, sendo indiferentes à luz ou fracamente fotofóbicos, muito ativos e raramente se entocando. Tais modificações comportamentais, observadas em espécies subterrâneas não proximamente aparentadas (heptapteríneos pertencentes a diferentes subgrupos, tricomicterídeos), resultam de processos convergentes de especialização à vida subterrânea. Além disso, heptapteríneos troglóbios exploram todo o espaço do habitat, nadando frequentemente na coluna da água e superfície, ao contrário da grande maioria dos epígeos dessa subfamília.

 

Como em Pimelodella kronei, o comportamento agressivo não sofreu redução nos cascudos cavernícolas, apenas algumas modificações. Os Ancistrus epígeos são territoriais, defendendo o abrigo contra intrusos. Apresentam dominância linear baseada no tamanho e possivelmente no sexo: os indivíduos maiores, e em particular os machos, escolhem e defendem as tocas melhores, só admitindo nas imediações cascudos jovens ou fêmeas. Esses cascudos maiores também afastam os demais do alimento (em laboratório, folhas de verdura escaldada). Ancistrus cryptophthalmus perdeu o hábito de se entocar e as interações agonísticas quase sempre ocorrem junto ao alimento, sugerindo que a defesa do território foi deslocada para os recursos alimentares (Trajano & Souza, 1994). Do mesmo modo, não há evidências conclusivas de redução do comportamento agressivo em Taunayia sp. nem na nova espécie da Chapada Diamantina (Trajano & Bockmann, 1999).

 

Os bagres Ituglanis troglóbios da caverna Passa Três* diferem dos anteriores por passarem a maior parte do tempo escondidos, enterrados ou em tocas. Dos exemplares trazidos ao laboratório em São Paulo em 1988, sobreviveu um casal que veio a se reproduzir. O casal foi deixado em aquário comum com filtro externo de carvão ativado, convivendo pacificamente com um lambari cavernícola mexicano, e sendo alimentado de uma a duas vezes por semana com tubifex e ração industrializada seca floculada ou granulada. Não houve, portanto, qualquer cuidado especial. Via de regra, os dois exemplares permaneciam em tocas separadas, mostrando um hábito solitário. Porém, ao final de 1989/início de 1990, observei interações que aparentavam comportamento reprodutivo: nadavam juntos, em movimentos rápidos, por vezes se enrolando, ou um deles (provavelmente o macho) perseguia o outro, tocando-o com o focinho na parte posterior do corpo, após o que entravam na mesma toca, aí permanecendo por muito tempo. Em meados de fevereiro, foram observados oito filhotes com comprimento variando de 5,0 a 10mm, o que indica desova parcelada, como em Trichomycterus areolatus (Manriquez et al., 1988). Os pais e o lambari foram retirados, e os jovens continuaram a ser mantidos com alimento floculado. Entre fevereiro e março, verificou-se um crescimento individual médio em torno de 0,16mm por dia. Infelizmente, quase todos os jovens morreram durante o mês de abril, talvez devido a uma infecção bacteriana, tendo sobrevivido um único exemplar. Este também veio a morrer, em 1990, quando apresentava 32mm de comprimento total, ou seja, cerca de um terço do comprimento dos pais, e com os olhos aparentemente iniciando um processo de afundamento na cabeça que poderia estar relacionado com sua regressão. Mais de 10 anos após, obtivemos reprodução, igualmente não-intencional, de exemplares de Ancistrus cryptophthalmus também da caverna Passa Três.


(*) Uma das espécies já foi descrita: Ituglanis passensis Fernández & Bichuette, 2002.

 

Os aspectos mais interessantes dos jovens de Ituglanis sp. referem-se aos olhos e à pigmentação. Os indivíduos adultos são troglomórficos típicos: quase totalmente despigmentados, apresentando apenas alguns melanócitos na região dorsal e olhos vestigiais recobertos pela pele, por vezes visíveis como vesículas amorfas escuras. No entanto, os jovens nasceram pigmentados e com olhos de estrutura aparentemente normal, o mesmo tendo sido observado para Ancistrus cryptophthalmus. Há muito sabia-se que outros vertebrados troglóbios, tais como Astyanax spp. e a salamandra européia Proteus anguinus, nascem com olhos normais, os quais regridem ao longo da ontogenia (Peters & Peters, 1973; Vandel et al., 1969). Os dados obtidos com Ituglanis sp. e Ancistrus cryptophthalmus, grupos filogeneticamente distintos dos dois acima mencionados, corroboram a ideia de tratar-se esse de um fenômeno generalizado para peixes troglóbios.







CRUSTÁCEOS TROGLÓBIOS DO BRASIL

 

Ao lado dos peixes e no Hemisfério Norte também das salamandras, os crustáceos constituem um grupo de grande importância no meio subterrâneo aquático. Em todo o mundo são encontradas populações troglóbias, tanto entre os chamados crustáceos modernos (decápodes como caranguejos, pitus e lagostins, anfípodes e isópodes), como os ditos relictos, ou seja, grupos que foram amplamente distribuídos no passado, mas que atualmente são representados por raras espécies de distribuição restrita, ocorrendo em ambientes bastante particulares.

 

No Brasil, a despeito do número reduzido de estudos bioespeleológicos, a maioria limitando-se a levantamentos faunísticos, são conhecidos vários exemplos de crustáceos troglóbios. Entre os anfípodes, podemos citar Spelaeogammarus bahiensis Brum, 1975, da Bahia (Koenemann & Holsinger, 2000), Megagidiella azul, do Mato Grosso do Sul (Koenemann & Holsinger, 1999), e Hyalella caeca Pereira, 1989, de cavernas do Alto Ribeira, além de várias espécies não descritas.

 

Troglóbios mais frequentes no Alto Ribeira são os crustáceos do gênero Aegla (Decapoda, Aeglidae), conhecidos popularmente como tatuís de água doce. As espécies de Aegla são bastante comuns nos rios epígeos da região, formando populações troglóbias em várias cavernas. A biologia, ecologia e comportamento desses crustáceos foram objeto da Dissertação de Mestrado de Moracchioli (1994).



Aegla

 













 

 Tatuí de água doce, Aegla sp., crustáceo troglóbio do Vale do Ribeira.

 Foto: Marcelo Notare.



Embora os pitus ou camarões de água doce sejam troglóbios relativamente comuns em outras partes do mundo, no Brasil foi registrado, até o momento, um único caso de população com algum troglomorfismo. Trata-se de Macrobrachium sp., que apresenta despigmentação ocular em caverna arenítica de Altamira, no Pará (Trajano & Moreira, 1991), onde também foram encontrados alguns exemplares de Erythrinus com má-formação ocular.

 

Porém, de todos os crustáceos cavernícolas brasileiros, talvez o mais interessante seja Potiicoara brasiliensis Pires, 1987, que ocorre no lençol freático aflorando em cavernas de uma ampla área do Mato Grosso do Sul, incluindo a Serra da Bodoquena. Essa espécie pertence à Ordem Spelaeogriphacea, cujos aparentados viventes apresentam uma distribuição Gondwânica em cavernas da África do Sul (Spelaeogriphus lepidops Gordon, 1957) e no aquífero de Millstream, oeste da Austrália (Mangkurtu mityula Poore & Hmphreys, 1998). Uma hipótese para explicar tais ocorrências é a de que os Spelaeogriphacea constituem um grupo muito antigo, que tinha distribuição ampla na Gondwana (super-continente do Hemisfério Sul), há mais de 70 milhões de anos (Pires, 1987). Com a deriva dos continentes atuais, os ancestrais de P. brasiliensis, S. lepidops e M. mityula teriam se separado, e as demais espécies do grupo, se extinguido. Na realidade, espécies fósseis mostram que a distribuição dos Spelaeogriphacea era ainda mais ampla, abrangendo a Laurásia (supercontinente do Hemisfério Norte), onde se extinguiu totalmente, o que daria às espécies atuais o status de relictos. Potiicoara brasiliensis foi estudada em detalhe por N. Moracchioli em sua Tese de Doutorado (Moracchioli, 2002).

 

 Lagoa_Azul


 

 

 














 Gruta do Lago Azul, município de Bonito (MS), onde foram encontradas novas espécies troglóbias de       

 crustáceos. Foto: Eleonora Trajano.

 

 





Referências Bibliográficas

 

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