Poço Encantado, na Chapada Diamantina (BA), onde foi encontrado um gênero novo de bagre troglóbio (ver foto abaixo). Foto: Ricardo M. Correia.
Novo gênero de bagre (Heptapterinae) cego descoberto no Poço Encantado (BA). Foto: Marcelo Notare.
O meio subterrâneo, do qual fazem parte as cavernas, apresenta
particularidades notáveis: ausência total de luz, determinando a inexistência
de plantas clorofiladas e a impossibilidade do uso da visão, e tendência a
estabilidade ambiental. Grande parte do alimento é importada da superfície,
carreada pela água ou por animais que penetram no meio subterrâneo, geralmente
configurando-se uma situação de escassez alimentar.
Organismos capazes de viver em tais condições colonizam o habitat
hipógeo e, uma vez isolados da superfície (meio epígeo) por algum evento
geológico ou climático, podem se especializar a ponto de se tornarem incapazes
de retornar à vida epígea de seus ancestrais. Tais organismos são chamados
troglóbios ou cavernícolas obrigatórios. Dentre as várias modificações
morfológicas, fisiológicas e comportamentais que apresentam, destacam-se a
redução da pigmentação melânica e dos órgãos visuais. Nas cavernas,
encontram-se espécies normais, que não passaram por aquele isolamento
(troglófilos, que podem completar o ciclo de vida tanto nas cavernas como no
meio epígeo, e trogloxenos, que devem sair periodicamente para completar esse
ciclo), ao lado de troglóbios em diferentes estágios de perda dos olhos e da
pigmentação.
A maioria dos cavernícolas pertence a grupos que já vivem no meio epígeo
em situações similares às observadas nas cavernas: animais com atividade
noturna, hábitos criptobióticos e dieta não especializada. Entre os peixes,
grupos como os Siluriformes, predominantemente noturnos e quimio-orientados,
são bons cavernícolas em potencial, e incluem populações troglóbias em vários
continentes. Isto não significa que peixes como os Characiformes, mais diurnos
e visualmente orientados, não possam se tornar cavernícolas, apenas que a
possibilidade é menor, uma vez que implicaria em mudanças maiores nos seus
hábitos de vida.
Mesmo entre os Characiformes, em geral os troglóbios originaram-se de
espécies com alguma predisposição para a vida subterrânea: é o caso das
espécies troglóbias do gênero Astyanax da serra de El Abra
(México), intensamente estudadas quase 200 publicações até 1971 (Mitchell et
al., 1977), cuja espécie epígea aparentada, A. mexicanus de
Philippi, 1853, apresenta atividade crepuscular, e não diurna como é comum
entre os lambaris, e comportamento reprodutivo quimicamente orientado.
Astyanax sp., do México. Há várias décadas este caracídeo cego de caverna
vem sendo mantido e reproduzido por aquaristas de todo o mundo.
Foto: Marcelo Notare.
No Brasil, já foram encontradas várias espécies de peixes com
especializações para a vida subterrânea, a maioria Siluriformes (Trajano,
1997a, Trajano & Bichuette, dados não publicados): os pimelodídeos
Heptapterinae Pimelodella kronei (Ribeiro, 1907), do Alto Vale do
Ribeira (SP) [o outro bagre troglóbio citado na literatura para São Paulo, Caecorhamdella
brasiliensis Borodin, 1927, é, na realidade, sinônimo de P.
kronei (Trajano & Britski, 1992)]; uma nova espécie de Pimelodella da região
de São Domingos (GO); Taunayia sp., da região de Campo Formoso
(norte da Bahia); um novo gênero da Chapada Diamantina (BA) (citado em algumas
publicações como cf. Rhamdella sp. e Imparfinis sp.); e Phreatobiuscisternarum Goeldi,
1904, habitante do meio intersticial (portanto, não-cavernícola) na região do
delta do Amazonas (PA/AM); os tricomicterídeos Trichomycterus
itacarambiensis Trajano & Pinna, 1996, do norte de Minas Gerais;
duas espécies não-descritas de Trichomycterus, uma da
região da Serra da Bodoquena (MS) e outra do sul da Bahia; e duas ou mais
espécies não-descritas de Ituglanis, de São Domingos (GO) (M. E.
Bichuette, comun. pess.); e os loricariídeos Ancistrus cryptophthalmus Reis, 1987,
de São Domingos (GO) e Ancistrus formoso Sabino & Trajano, 1997,
do Mato Grosso do Sul. São ainda conhecidos peixes-elétricos troglóbios: Eigenmanniavicentespelaea Triques,
1996 (Gymnotiformes: Sternopygidae), também de São Domingos (GO), e o caracídeo
Stygichthys typhlops Brittan & Bohlke, 1965, coletada por
ocasião da abertura de poço artesiano em Jaiba (MG). Note-se que novas espécies
são descobertas a cada ano em diferentes áreas cársticas do Brasil, que assim
se apresenta como um dos países de maior riqueza de peixes troglóbios em todo o
mundo, ao lado da China, México e países do Sudeste Asiático.
Os bagres cegos de Iporanga
Pimelodella kronei foi o primeiro cavernícola
troglóbio descrito para o Brasil. Os assim chamados bagres cegos de Iporanga
foram coletados em caverna desse município pelo espeleólogo alemão Ricardo
Krone que, no século passado, realizou os primeiros estudos espeleológicos
intensivos no Vale do Alto Ribeira, sul de São Paulo (Krone, 1909). Trata-se do
cavernícola brasileiro mais estudado até o momento.
Pimelodella kronei, do Vale do Ribeira (SP) – comportamento agonístico.
Foto: João Allievi.
Pimelodella transitoria, do Vale do Ribeira (SP) – espécie troglófila.
Foto: José Sabino.
Na década de 40, o geneticista Crodowaldo Pavan fez sua tese de
Doutorado sobre esses bagres cegos, caracterizando morfologicamente as duas
populações então conhecidas e comparando-as com a provável espécie ancestral, o
mandi oculado e pigmentado Pimelodella transitoria (Ribeiro,
1912), além de efetuar algumas observações sobre seu comportamento (Pavan,
1945). Quarenta anos mais tarde decidi estudar esses interessantes cavernícolas
que deste modo foram objeto de uma segunda tese de Doutorado, enfocando a
ecologia, o comportamento e a morfologia comparada de Pimelodella kronei e P.
transitoria (Trajano,1987; 1989a; 1989b; 1991a; 1991b; 1994;
1997b).
Pimelodella kronei é um bagre de porte médio (atinge,
no máximo, 20 centímetros), encontrado até o momento em cinco cavernas do Alto
Ribeira, onde convive com P. transitoria, espécie troglófila. Pimelodella
kronei é o que se poderia chamar de troglóbio recente, pois apresenta variabilidade
individual nas características relacionadas à vida subterrânea, indicando que o
isolamento em cavernas foi recente, não tendo tempo evolutivo suficiente para a
regressão total de caracteres como olhos e pigmentação. Assim, são observados
desde indivíduos despigmentados até outros tão pigmentados quanto P.
transitoria, e, embora a maioria tenha olhos muito reduzidos, não
visíveis externamente, não é raro encontrar-se animais com olhos reduzidos
porém ainda externos ou até um ou outro indivíduo com olhos tão desenvolvidos
quanto os da espécie ancestral. Com relação às demais características
morfológicas externas, as duas espécies são praticamente indistinguíveis,
notando-se apenas uma tendência à redução do espinho da nadadeira dorsal nos
bagres cegos, estrutura de defesa que teria perdido sua função no ambiente
cavernícola, onde não há predadores de peixes.
Modificações comportamentais são bastante evidentes e incluem a perda,
em Pimelodella kronei, dos hábitos criptobióticos típicos da espécie
aparentada. Pimelodella transitoria é um bagre tímido, altamente
fotofóbico, que passa a maior parte do tempo escondido em tocas, exibindo
reações de medo ante quase todos os estímulos. Pimelodella kronei, por sua
vez, parece estar em meio a um processo de perda desses hábitos criptobióticos
os bagres cegos são pouco ou nada fotofóbicos e passam boa parte do tempo
explorando ativamente todo o ambiente, não somente o fundo (o que seria típico
da maioria dos pimelodídeos, em geral animais bentônicos) como também a coluna
da água e a superfície; como outros peixes troglóbios, reage aos estímulos de
forma positiva, orientando-se em direção aos mesmos, aparentemente
interpretando-os sempre como sinal de alimento. Tal comportamento aumentaria a
chance do animal encontrar alimento em um ambiente onde os nutrientes são
escassos e onde não há ameaça de predadores (Trajano, 1989a).
Também relacionado à escassez de alimentos está o hábito alimentar
generalizado e particularmente oportunista dos bagres cegos, que comem todo e
qualquer tipo de invertebrado (insetos, crustáceos, moluscos, anelídeos e, até
mesmo, aracnídeos) que viva na água ou que venha a cair na mesma, além de
detritos e guano. Um hábito alimentar generalista já está presente em Pimelodella
transitoria (os pimelodídeos em geral são carnívoros),
constituindo mais um pré-requisito à vida cavernícola do que propriamente uma
especialização decorrente da mesma.
Há comportamentos que sofreram modificações em outros peixes troglóbios
[e. g. Astyanax spp., do México, e os Amblyopsidae das cavernas dos
Estados Unidos (Parzefall, 1986)], e que, no entanto, mantiveram-se em Pimelodella
kronei. É o caso do comportamento agressivo, que sofreu regressão em várias
espécies cavernícolas, mas que se manteve nos bagres cegos de Iporanga
provavelmente devido à alta competição por alimento. Estes são animais bastante
agressivos, que apresentam dominância linear baseada primariamente no tamanho,
embora a posse do território e um alto grau individual de força e/ou
agressividade possa também influenciar o resultado dos confrontos, fazendo com
que peixes um pouco menores, porém muito agressivos, fortes, ou residentes na
área de confronto, possam vir a ganhar. Uma vez estabelecida a hierarquia, o
subordinado passa a evitar o dominante, mas não os peixes desconhecidos, o que
demonstra a existência de reconhecimento individual (Trajano, 1991b).
Pimelodella kronei apresenta um complexo sistema de
comunicação química através de substâncias liberadas pelos indivíduos. Essas
substâncias, transportadas pela água e percebidas à distância, permitem aos
bagres cegos identificar a presença de outros bagres cegos nas proximidades,
mas não informam sobre o sexo e a posição hierárquica dos mesmos. Somente
quando estão muito próximos ou em contato é que são capazes de se reconhecer
individualmente (Trajano, 1989b).
Ao que tudo indica, o reconhecimento químico baseia-se no olfato. Ora,
sabe-se que determinados poluentes, como detergentes e metais pesados, destroem
o epitélio olfativo dos peixes (Cancalon, 1982), o que levaria a uma
desorganização de todo o sistema social de animais como os bagres cegos,
resultando em lutas constantes; as lutas são muito estressantes e de alto custo
energético, podendo romper o frágil equilíbrio em que se encontram esses
cavernícolas. A poluição de origem química, verificada em algumas das cavernas
onde vive Pimelodella kronei, é um dos graves perigos a que está
exposta a espécie.
Em função da já mencionada escassez alimentar e da restrição espacial do
habitat, as populações de bagres cegos são pequenas. O crescimento individual é
muito lento (animais adultos crescem menos de 1,0mm por mês), a longevidade é
alta (podem viver de 10 a 15 anos) e a reprodução é pouco frequente,
configurando-se o que se denomina ciclo de vida do tipo K, adaptação muito
comum entre os troglóbios em geral (Trajano, 1991a). Como consequência,
qualquer declínio populacional causado por perturbações, como alteração no
aporte de alimento (e. g. por desmatamento do entorno da caverna ou modificações
no regime hídrico) e coletas intensivas, a que estão efetivamente sujeitos os
bagres cegos, pode ocasionar a extinção da espécie.
Devido a essa vulnerabilidade, Pimelodella kronei está sendo
incluída na lista oficial de espécies ameaçadas de extinção, juntamente com
outros peixes troglóbios brasileiros.
Cavernícolas de Goiás e da Bahia
Apesar do troglóbio mais famoso do País viver nas cavernas de São Paulo,
é na região de São Domingos (GO) que se encontra a fauna mais diversificada de
peixes cavernícolas, incluindo tanto troglóbios como troglófilos e trogloxenos.
Essa diversidade pode estar relacionada em parte com o tamanho das cavernas de
São Domingos, em média bem maiores que as do Vale do Ribeira, e em parte com o
fato de seus rios pertencerem à Bacia Amazônica, conhecida por sua diversidade
ictiológica.
A rica fauna de peixes não-troglóbios registrados nas cavernas de São
Domingos compreende, até o momento, 21 espécies, sendo cinco Characiformes, 10
Siluriformes (seis heptapteríneos e três loricariídeos), cinco Gymnotiformes e
um Cichlidae, todos com olhos e pigmentação melânica cutânea aparentemente tão
desenvolvidos como o observado nos exemplares epígeos (Bichuette & Trajano,
dados não publicados).
Mais notável ainda é a fauna de peixes do sistema do Rio São Vicente,
que inclui pelo menos cinco espécies troglóbias: Ancistrus cryptophthalmus; Ituglanis spp. [no
mínimo duas, possivelmente quatro espécies(Bichuette, M.E. comun. pess.)]; Pimelodella sp.; e Eigenmanniavicentespelaea. Na caverna
Passa Três encontramos cascudos Ancistrus cryptophthalmus e bagres Ituglanis sp. vivendo
sintopicamente nos trechos de corredeiras. Nessa e em outras cavernas da
região, A. cryptophthalmus forma populações bastante elevadas,
atingindo densidades de 0,5 (Passa Três) a 0,9 indivíduos por metro quadrado
(Angélica) (Trajano, 2001), fato que pode estar relacionado com o hábito
alimentar detritívoro desses cascudos, que ingerem lodo, abundante na caverna
(recurso alimentar não limitante). Já os bagres Ituglanis são menos
comuns, alimentando-se de pequenos invertebrados (recurso limitante). Dessa
forma, não haveria competição por alimento, o que explica a convivência entre
as duas espécies troglóbias.
Ancistrus cryptophthalmus, do sistema do Rio São Vicente (GO).
Foto: Ronaldo Novelli.
Ituglanis sp., também do sistema do Rio São Vicente (GO). Foto: Ronaldo Novelli.
Ituglanis sp., – diferentes graus de regressão ocular.
Fotos: Ronaldo Novelli.
Explorações ictiológicas em cavernas da Bahia revelaram uma fauna que,
embora muito menos diversificada, destaca-se por sua especialização. As duas
espécies troglóbias de Heptapterinae, uma ainda não descrita pertencente a um
novo gênero, da Chapada Diamantina, e Taunayia sp., de
Campo Formoso, ambas totalmente anoftálmicas e despigmentadas, estão entre os
peixes troglóbios brasileiros mais modificados.
Taunayia sp., de Campo Formoso (BA). Foto: José Sabino.
Exemplares das espécies troglóbias acima mencionadas foram mantidos
vivos para estudo em laboratório, o que vem ampliando de modo substancial o
conhecimento acerca dos peixes cavernícolas brasileiros.
De um modo geral, os grupos epígeos aparentados a essas espécies
troglóbias (e.g. Pimelodella transitoria,Imparfinis minutus e outrosheptap-teríneos
epígeos, muitos tricomicterídeos, Ancistrus spp.)
apresentam hábitos noturnos, criptobióticos (escondem-se durante o dia) e são
claramente fotofóbicos. A comparação com estes epígeos sugere que as espécies
troglóbias por nós estudadas sofreram uma redução nesses hábitos, sendo
indiferentes à luz ou fracamente fotofóbicos, muito ativos e raramente se
entocando. Tais modificações comportamentais, observadas em espécies
subterrâneas não proximamente aparentadas (heptapteríneos pertencentes a
diferentes subgrupos, tricomicterídeos), resultam de processos convergentes de
especialização à vida subterrânea. Além disso, heptapteríneos troglóbios
exploram todo o espaço do habitat, nadando frequentemente na coluna da água e
superfície, ao contrário da grande maioria dos epígeos dessa subfamília.
Como em Pimelodella kronei, o comportamento agressivo não
sofreu redução nos cascudos cavernícolas, apenas algumas modificações. Os Ancistrus epígeos são
territoriais, defendendo o abrigo contra intrusos. Apresentam dominância linear
baseada no tamanho e possivelmente no sexo: os indivíduos maiores, e em
particular os machos, escolhem e defendem as tocas melhores, só admitindo nas
imediações cascudos jovens ou fêmeas. Esses cascudos maiores também afastam os
demais do alimento (em laboratório, folhas de verdura escaldada). Ancistrus
cryptophthalmus perdeu o hábito de se entocar e as interações
agonísticas quase sempre ocorrem junto ao alimento, sugerindo que a defesa do
território foi deslocada para os recursos alimentares (Trajano & Souza,
1994). Do mesmo modo, não há evidências conclusivas de redução do comportamento
agressivo em Taunayia sp. nem na nova espécie da Chapada Diamantina
(Trajano & Bockmann, 1999).
Os bagres Ituglanis troglóbios da caverna Passa Três*
diferem dos anteriores por passarem a maior parte do tempo escondidos, enterrados
ou em tocas. Dos exemplares trazidos ao laboratório em São Paulo em 1988,
sobreviveu um casal que veio a se reproduzir. O casal foi deixado em aquário
comum com filtro externo de carvão ativado, convivendo pacificamente com um
lambari cavernícola mexicano, e sendo alimentado de uma a duas vezes por semana
com tubifex e ração industrializada seca floculada ou granulada. Não houve,
portanto, qualquer cuidado especial. Via de regra, os dois exemplares
permaneciam em tocas separadas, mostrando um hábito solitário. Porém, ao final
de 1989/início de 1990, observei interações que aparentavam comportamento
reprodutivo: nadavam juntos, em movimentos rápidos, por vezes se enrolando, ou
um deles (provavelmente o macho) perseguia o outro, tocando-o com o focinho na parte
posterior do corpo, após o que entravam na mesma toca, aí permanecendo por
muito tempo. Em meados de fevereiro, foram observados oito filhotes com
comprimento variando de 5,0 a 10mm, o que indica desova parcelada, como em Trichomycterusareolatus (Manriquez
et al., 1988). Os pais e o lambari foram retirados, e os jovens continuaram a
ser mantidos com alimento floculado. Entre fevereiro e março, verificou-se um
crescimento individual médio em torno de 0,16mm por dia. Infelizmente, quase
todos os jovens morreram durante o mês de abril, talvez devido a uma infecção
bacteriana, tendo sobrevivido um único exemplar. Este também veio a morrer, em
1990, quando apresentava 32mm de comprimento total, ou seja, cerca de um terço
do comprimento dos pais, e com os olhos aparentemente iniciando um processo de
afundamento na cabeça que poderia estar relacionado com sua regressão. Mais de
10 anos após, obtivemos reprodução, igualmente não-intencional, de exemplares
de Ancistrus cryptophthalmus também da caverna Passa Três.
(*) Uma das espécies já foi descrita: Ituglanis passensis Fernández & Bichuette, 2002.
Os aspectos mais interessantes dos jovens de Ituglanis sp.
referem-se aos olhos e à pigmentação. Os indivíduos adultos são troglomórficos
típicos: quase totalmente despigmentados, apresentando apenas alguns
melanócitos na região dorsal e olhos vestigiais recobertos pela pele, por vezes
visíveis como vesículas amorfas escuras. No entanto, os jovens nasceram
pigmentados e com olhos de estrutura aparentemente normal, o mesmo tendo sido
observado para Ancistrus cryptophthalmus. Há muito sabia-se que
outros vertebrados troglóbios, tais como Astyanax spp. e a
salamandra européia Proteus anguinus, nascem com olhos normais, os quais
regridem ao longo da ontogenia (Peters & Peters, 1973; Vandel et al.,
1969). Os dados obtidos com Ituglanis sp. e Ancistrus cryptophthalmus, grupos
filogeneticamente distintos dos dois acima mencionados, corroboram a ideia de
tratar-se esse de um fenômeno generalizado para peixes troglóbios.
CRUSTÁCEOS TROGLÓBIOS DO BRASIL
Ao lado dos peixes e
no Hemisfério Norte também das salamandras, os crustáceos constituem um grupo
de grande importância no meio subterrâneo aquático. Em todo o mundo são
encontradas populações troglóbias, tanto entre os chamados crustáceos modernos
(decápodes como caranguejos, pitus e lagostins, anfípodes e isópodes), como os
ditos relictos, ou seja, grupos que foram amplamente distribuídos no passado,
mas que atualmente são representados por raras espécies de distribuição
restrita, ocorrendo em ambientes bastante particulares.
No Brasil, a despeito do número reduzido de estudos
bioespeleológicos, a maioria limitando-se a levantamentos faunísticos, são
conhecidos vários exemplos de crustáceos troglóbios. Entre os anfípodes,
podemos citar Spelaeogammarus bahiensis Brum, 1975, da
Bahia (Koenemann & Holsinger, 2000), Megagidiella azul,
do Mato Grosso do Sul (Koenemann & Holsinger, 1999), e Hyalella caeca
Pereira, 1989, de cavernas do Alto Ribeira, além de várias espécies não
descritas.
Troglóbios mais frequentes no Alto Ribeira são os
crustáceos do gênero Aegla (Decapoda, Aeglidae),
conhecidos popularmente como tatuís de água doce. As espécies de Aegla
são bastante comuns nos rios epígeos da região, formando populações troglóbias
em várias cavernas. A biologia, ecologia e comportamento desses crustáceos
foram objeto da Dissertação de Mestrado de Moracchioli (1994).
Tatuí de água doce, Aegla sp., crustáceo troglóbio do Vale do Ribeira.
Foto: Marcelo Notare.
Embora os pitus ou camarões de água doce sejam
troglóbios relativamente comuns em outras partes do mundo, no Brasil foi
registrado, até o momento, um único caso de população com algum troglomorfismo.
Trata-se de Macrobrachium sp., que apresenta
despigmentação ocular em caverna arenítica de Altamira, no Pará (Trajano &
Moreira, 1991), onde também foram encontrados alguns exemplares de Erythrinus
com má-formação ocular.
Porém, de todos os crustáceos cavernícolas
brasileiros, talvez o mais interessante seja Potiicoara brasiliensis
Pires, 1987, que ocorre no lençol freático aflorando em cavernas de uma ampla
área do Mato Grosso do Sul, incluindo a Serra da Bodoquena. Essa espécie
pertence à Ordem Spelaeogriphacea, cujos aparentados viventes apresentam uma
distribuição Gondwânica em cavernas da África do Sul (Spelaeogriphus
lepidops Gordon, 1957) e no aquífero de Millstream, oeste da
Austrália (Mangkurtu mityula Poore & Hmphreys,
1998). Uma hipótese para explicar tais ocorrências é a de que os
Spelaeogriphacea constituem um grupo muito antigo, que tinha distribuição ampla
na Gondwana (super-continente do Hemisfério Sul), há mais de 70 milhões de anos
(Pires, 1987). Com a deriva dos continentes atuais, os ancestrais de P.
brasiliensis, S. lepidops
e M. mityula teriam se separado, e as demais
espécies do grupo, se extinguido. Na realidade, espécies fósseis mostram que a
distribuição dos Spelaeogriphacea era ainda mais ampla, abrangendo a Laurásia
(supercontinente do Hemisfério Norte), onde se extinguiu totalmente, o que
daria às espécies atuais o status de relictos. Potiicoara brasiliensis
foi estudada em detalhe por N. Moracchioli em sua Tese de Doutorado
(Moracchioli, 2002).
Gruta
do Lago Azul, município de Bonito (MS), onde foram encontradas novas
espécies troglóbias de
crustáceos. Foto: Eleonora Trajano.
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