Dentre as espécies de peixes-cachimbo que ocorrem no
Brasil, a mais comum nas lojas de aquariofilia é Microphis
aff. lineatus, vulgarmente chamada de cachimbinho,
trombetinha ou agulha. Trata-se de espécie eurialina (penetra na água doce),
considerada constante no baixo curso dos rios, ocorrendo em águas salobras de
regiões estuarinas. Habita locais de pouca profundidade e correnteza reduzida,
em geral sob a vegetação marginal composta de gramíneas e macrófitas aquáticas,
principalmente o aguapé (Eichhornia crassipes),
onde encontra abrigo e alimento. Esta espécie chega a penetrar rio acima,
podendo ser coletada a mais de 100 quilômetros do mar. A estabilidade do
ambiente em que vive é função direta da pluviosidade da região. Durante o
período de cheia, ocorre aumento da velocidade da correnteza, acarretando
desorganização da vegetação marginal com grande carreamento de macrófitas
aquáticas flutuantes, o que reduz de modo considerável seu habitat.
Rio Jucu (ES), onde os autores realizaram pesquisas com Microphis aff. lineatus. Foto: Edson Perrone.
É raro coletar indivíduos menores que 80 milímetros,
pois os jovens habitam locais diferentes dos adultos, nadando ativamente (ou
são carreados pela correnteza), encardumados, fazendo com que, segundo Dawson e
Vari (1982), possam ser encontrados a 60 quilômetros da costa.
O micro-habitat da espécie é formado de locais pouco
profundos, com reduzida correnteza e margens providas de gramíneas (Brachyaria
sp.) com partes pendentes sobre a água e outras submersas onde fixam-se as
macrófitas aquáticas flutuantes. As coletas, para fins científicos, são
realizadas utilizando-se uma peneira (ou confeccionar um peneirão retangular de
canos de PVC com saco de malha de náilon tipo mosquiteira de três milímetros de
abertura) que deverá ser introduzida sob a vegetação em movimentos rápidos,
tomando-se cuidado na hora de inspecionar o material vegetal acompanhante, pois
Microphis aff. lineatus
costuma ficar preso entre as raízes das gramíneas e das macrófitas aquáticas.
Muitas vezes o próprio peixe é confundido com gravetos ou outros detritos
vindos na amostragem.
O ictiólogo João Luiz Gasparini em atividade de coleta de Microphis aff. lineatus no Rio Jucu (ES). Fotos: Edson Perrone.
Os exemplares capturados suportam bem o estresse da
coleta, o acondicionamento e o transporte até o laboratório, uma vez que
possuem movimentos lentos, facilitando o manuseio e o suprimento de suas
necessidades, inclusive de oxigênio. Devem ser acondicionados em sacos
plásticos com água do mesmo local de coleta e transportados em caixas de isopor
(para evitar choques térmicos e mecânicos).
Frequência de indivíduos de Microphis aff. lineatus coletados no período de outubro 1987 / agosto 1988 na região estuarina do Rio Jucu (ES). Modificado de Perrone (1989).
Hábitos
Em aquário, Microphis
aff. lineatus exibe comportamento discreto e bastante
sociável, não competindo com outros peixes, razão pela qual não é aconselhável
introduzir espécies agressivas e/ou vorazes. Sua movimentação lenta entre a
vegetação deve-se às nadadeiras peitorais, enquanto que a caudal é utilizada
para deslocamentos rápidos a curta distância. Quando parado, costuma ficar
próximo ou apoiado com o dorso nas partes submersas da vegetação e com parte da
região caudal voltada para baixo. Este comportamento garante uma perfeita
camuflagem. Outra característica bastante interessante é a capacidade de
movimentação independente dos olhos, comum a todas as espécies da família
Syngnathidae. Tal característica facilita a localização de suas presas e de
possíveis predadores.
A nadadeira caudal é utilizada para deslocamentos rápidos a curta distância. Foto: Marcelo Notare.
Alimentação
Microphis aff. lineatus
utiliza seu longo focinho para adquirir, por sucção, os alimentos, entre os
quais larvas de insetos, microcrustáceos e formas jovens de peixes. Perrone
(1990) constatou ser Microphis aff. lineatus,
no Rio Jucu (ES), uma espécie carnívora de hábitos diurnos, alimentando-se de
insetos (larvas de plecópteros, larvas de dípteros e larvas de efemerópteros);
crustáceos (ovos, larvas e jovens de carídeos e copé-podos); e peixes (Eucinostomus spp.).
Na natureza, modifica seus hábitos à medida que
cresce. Os jovens alimentam-se de larvas de insetos, enquanto que os adultos,
de crustáceos e peixes. Estas alterações no regime alimentar são de grande
importância para a repartição dos recursos intraespecíficos.
Em aquário, aceita com facilidade Artemia salina
e Daphnia spp., além de larvas de mosquito.
Outros alimentos que podem ser oferecidos: plâncton congelado e formas jovens
de peixes ovovivíparos.
Principais alimentos de Microphis aff. lineatus. Fonte: Perrone (1990).
Reprodução
Não se conhece muito sobre a biologia reprodutiva de Microphis
aff. lineatus, supondo-se seguir padrões básicos de
sua espécie irmã do Mar do Caribe, ou seja, com a reprodução ocorrendo no mar,
na água doce e na região estuarina. Segundo Dawson e Vari (1982), o jovem da
espécie caribenha pode se desenvolver em água doce, estuarina ou marinha.
Na região estuarina do Rio Jucu, Perrone (1989)
encontrou Microphis aff. lineatus
reproduzindo-se durante todo o ano, com maior intensidade em dois períodos:
dezembro e, em menor escala, junho. Em 40% dos casos, os machos coletados
apresentaram de 49 a 565 ovos na bolsa incubadora. Alguns espécimes tinham suas
bolsas completamente cheias, outros com espaços vazios entre os ovos e outros
ainda foram capturados com poucos ovos dispersos de modo aleatório. Ao que tudo
indica, esta variação do número de ovos na bolsa incubadora não está
relacionada com o tamanho do peixe, mas sim com falhas no mecanismo de
transferência dos ovócitos produzidos pelas fêmeas para a bolsa incubadora dos
machos, ou seja, mais de uma fêmea deposita os ovócitos em um macho ou existe a
ocorrência de predação dos ovos por outros peixes, uma vez que a bolsa
incubadora desta espécie não apresenta estrutura de proteção.
Frequência de indivíduos de Microphis aff. lineatus imaturos e maduros, coletados no período de outubro 1987 / agosto 1988 no Rio Jucu. Modificado de Perrone (1989).
Como nas demais espécies de peixes-cachimbo, o
dimorfismo sexual (macho com a bolsa incubadora formada) só aparece quando o
peixe atinge determinado tamanho. Perrone (1990) constatou que as fêmeas entram
na fase de maturidade sexual com um comprimento médio de 109 milímetros e que
os machos começam a apresentar sua bolsa incubadora com um comprimento médio de
112 milímetros.
A reprodução de Microphis
aff. lineatus em cativeiro ainda não foi observada em
sua totalidade. Apenas conseguimos acompanhar alguns machos com ovos na bolsa e
a posterior eliminação dos filhotes. Quando nascem, os filhotes são pequenos,
frágeis e passam a nadar sem direção através de movimentos rápidos, geralmente
à meia água ou próximos do substrato.
O fracasso na criação dos filhotes, conseguindo-se
apenas uma sobrevivência de oito dias, deve estar diretamente relacionado com a
dependência marinha da espécie.
Os peixes-cachimbo gostam de se camuflar com a vegetação do aquário. Na foto, Microphis aff. lineatus assumindo o posicionamento das folhas de Vallisneria spiralis. Foto: Marcelo Notare.
Agradecimentos
Ao professor Claudio Zamprogno (in memoriam) pelas
sugestões e críticas apresentadas a este artigo. A Marcelo Notare, Fabio
Vieira, Luiz Carlos Spagnol e Artur Alves França pelo apoio.
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