Rachoviscus crassiceps coletado em floresta perto de Joinville (SC). Note o vermelho-vivo da nadadeira adiposa. Foto: Marcelo Notare.
Rachoviscus crassicepsMyers, 1926
um raro habitante de florestas do sul do Brasil
Júlio Cézar Ghisolfi
(HABITAT 74 - AGOSTO 2003)
Corria o ano de 1983,
quando vi, pela primeira vez, alguns exemplares de Rachoviscus crassiceps,
peixe da família dos caracídeos, em um aquário de propriedade de Carlão (Carlos
Pietropaolo Netto), dono da loja Tropical Killifish, muito conhecida em São
Paulo nas décadas de 1980 e 1990. Apesar de ser um peixe exótico e atraente,
não me interessei muito, já que estava envolvido com a criação de killifishes e
de algumas espécies de ciclídeos, e não dispunha de espaço ou tempo para me
dedicar a outros grupos de peixes. Ainda me recordo de ter olhado para aqueles
caracídeos sem dar muita bola e nem mesmo entender o porquê do Carlão chamar
minha atenção para eles, que nadavam em um aquário comunitário. Contou-me ele
que havia ganho tais peixes de um amigo, que os tinha coletado em uma recente
viagem ao litoral sul do Brasil, à procura de alguns killifishes raros.
Não fiquei totalmente
indiferente, pois me lembro bem dos reflexos dourados dos peixes deslocando-se
entre a vegetação do aquário, mas confesso que fiquei mais impressionado com a
procedência dos animais. Eles haviam sido presenteados ao Carlão por ninguém
menos que Rosario LaCorte, autor norte-americano de inúmeros artigos sobre
peixes raros. Naquela época, ainda não conhecia muito sobre aquariofilia, mas
já tinha ouvido falar deste aquarista, emérito especialista em killies e
caracídeos incomuns. Alguns anos se passaram, e neste meio tempo vim a saber
que o gênero Rachoviscus engloba duas espécies
relativamente endêmicas Rachoviscus graciliceps Weitzman
& Cruz, 1981, encontrada apenas no litoral Sul da Bahia e norte do Espírito
Santo; e Rachoviscus crassiceps, descrito por Myers
em 1926, e tido como originário do Rio de Janeiro até do seu reencontro, em
1975, nas proximidades da cidade de Paranaguá, no litoral do Paraná. Ambas as
espécies têm em comum, entre outras caracte-rísticas, o fato de serem
encontradas em coleções de água habitadas por killifishes anuais.
A literatura a
respeito do golden tetra nome com o qual o nosso peixe
foi introduzido no comércio europeu é ainda hoje muito parca e controversa,
apresentando dados contraditórios. O animal é tido por alguns como
relativamente pacífico e sociável com as outras espécies, apresentando os
machos alguma agressividade entre si durante a quadra reprodutora. Por outro lado,
há divergências de opinião, como a de Marcelo Notare (pers. com.), que o
considera de uma agressividade fora do comum. O texto mais abrangente e
elucidativo sobre esta espécie ainda é aquele escrito por Vilson Franciozi(1989) e publicado na Revista de
Aquariofilia sob o título Joinville: Die aquaristik in Deutsch-Brasilien.
Rachoviscus crassiceps (Incertae sedis) em aquário. Foto: Marcelo Notare.
Meu encontro seguinte
com esta espécie ocorreu no seu ambiente natural, nas florestas da região de
Araquari (SC), sendo muito
marcante, devido às circunstâncias em que ocorreu. Na época, acreditávamos que
a espécie anual Campellolebias brucei (Cyprinodontiformes,
Rivulidae) habitasse a região litorânea de Santa Catarina, inclusive nas
proximidades da cidade de Joinville. Havíamos realizado uma extensa pesquisa
bibliográfica, compilando todos os dados publicados sobre a espécie, e
acreditando que o mencionado killifish se encontrava extinto em sua localidade
típica, enviamos dois representantes da União Paulista de Killifishes (UPK),
para contactar os membros da Associação Joinvillense de Aquariofilia e
Ictiologia (AJAI), e com a ajuda de um grupo local de aquaristas tentar
localizar a espécie. Em meados de 1986, Carlos Tatsuta e Vanderley L. Teixeira,
auxiliados por Vilson Franciozi e Constantino Gastaldi (diretores da referida associação),
exploraram a região à procura do killie perdido. A empreitada foi bem sucedida
e resultou na descoberta de uma nova espécie anual, agora denominada Campellolebias
chrysolineatus, na localidade de Araquari. Esse
contato nos rendeu um convite para uma futura viagem. E desta vez, em novembro
de 1987, eu pude participar, juntamente com Marco Túlio de Lacerda e Gilberto
Campello Brasil.
Campellolebias chrysolineatus, aploqueilóideo anual. Essa espécie rara de killifish
foi descoberta por membros da UPK e da AJAI no mesmo habitat de
Rachoviscus crassiceps. Foto: Gilberto Campello Brasil.
Rivulus luelingi (Rivulinae), killifish não-anual encontrado no mesmo biótopo.
Os espécimes de floresta possuem colorido muito intenso. Foto: Marcelo Notare.
Embarcamos para
Joinville, a partir da rodoviária de São Paulo. Fomos muito bem acolhidos por
Vilson e sua simpática esposa Mara Lúcia, que não mediram esforços para nos
agradar e facilitar ao máximo a nossa estada, inclusive nos levando aos locais
de coleta. Após visitar várias localidades brejosas, encontramos Rachoviscus
crassiceps, juntamente com alguns exemplares de Rivulus
luelingi de colorido muito intenso, em alguns córregos
escondidos no interior da mata de baixada. Mais tarde, Vilson nos levou a um
local, onde no ano anterior ele havia coletado uma Campellolebias
de tamanho recorde. Foi então que presenciei uma das cenas mais impressionantes
das muitas que tive ocasião de observar. O local era um córrego sazonal de água
negra que atravessava a floresta. A água estava muito rasa, e em franco
processo de dessecamento, pois fazia algum tempo que não chovia na região, e
literalmente forrada de peixes, de várias espécies, todos prestes a morrer, com
uma grande percentagem de Rachoviscus crassiceps.
Vilson nos explicou que este fato era natural e mesmo inevitável, e que a cada
ano incontáveis peixes morriam nestas armadilhas naturais da floresta. Disse
ainda supor que Rachoviscus crassiceps tinha uma
reprodução do tipo anual, pois era mais frequentemente encontrado em
ambientes sazonais, que ficavam secos boa parte do ano, muitas vezes sem nenhum
ponto de contato aparente com corpos de água permanentes.
Floresta inundada com água escura, perto de Joinville (SC),
habitat de Rachoviscus crassiceps e de várias outras espécies de peixes.
Foto: Vilson Franciozi.
Membro da Associação Joinvillense de Aquariofilia e Ictiologia (AJAI)
em atividade de campo. Foto: Vilson Franciozi.
Tive muita vontade de
coletar alguns exemplares que estavam condenados a uma morte certa. Porém não
havia como mantê-los vivos durante a minha viagem de volta para São Paulo. Em
fins de 1988, Celso A. Lopes, então presidente da UPK, recebeu de Vilson 10
exemplares jovens da espécie, muito saudáveis e bonitos. Ainda com aquela
imagem dos peixes agonizando bem vívida na minha mente, pedi a Celso que me
cedesse um casal. Porém ele estava imbuído da tarefa de procriá-los e me disse
que assim que conseguisse uma boa desova me cederia um casal. Nessa época,
encontrava-me desempregado, tentando dar um novo rumo a minha vida, e embora
ainda não soubesse , prestes a me casar e me mudar da cidade de São Paulo.
Depois de várias marchas e contra-marchas, casei-me e aluguei uma pequena
chácara na cidade de Amparo, na região serrana do estado de São Paulo, onde
minha esposa havia administrado uma piscicultura ornamental. Uma semana antes
da mudança, um colega da UPK, tendo ouvido falar dos peixes presos no riacho e
da minha vontade de reproduzi-los, ofertou-me um casal de Rachoviscus
crassiceps adquirido em uma loja de aquários da
região do Aeroporto. As fêmeas da espécie normalmente são um pouco menores do
que os machos, que atingem um comprimento de quatro centímetros e meio; porém,
esta era enorme, acredito que media mais do que cinco centímetros e apresentava
o abdomen bem dilatado. O macho era menor, talvez com uns três centímetros de
comprimento. O dimorfismo não é aparente fora da época de reprodução, sendo a
coloração de ambos os sexos idêntica, apesar de o colorido da fêmea ser um
pouco menos brilhante. Digno de nota é o colorido vermelho-vivo da pequena
nadadeira adiposa. Creio que uma descrição detalhada do padrão de colorido da
espécie torna-se desnecessária, por causa das fotos deste artigo.
— OUTRAS ESPÉCIES ENCONTRADAS NO MESMO HABITAT —
(ESPÉCIES SIMPÁTRICAS)
Hollandichthys cf. multifasciatus (Incertae sedis) em aquário. Foto: Marcelo Notare.
Mimmagoniates lateralis (Glandulocaudinae) em aquário. Foto: Marcelo Notare.
Scleromystax cf. macropterus (Corydoradinae) em aquário. Foto: Marcelo Notare.
Devo admitir que não
cuidei adequadamente dos peixes e simplesmente deixei-os em um aquário de 12
litros com alguns tufos de musgo-de-Java. A água utilizada era proveniente da
chuva, acidificada por um tufo amarrado de musgo esfagno, com um pH ignorado. A
alimentação básica consistiu de patê de Gordon (modificado) complementado por
larvas de mosquitos. Estava muito atarefado com os inúmeros detalhes que a
mudança de residência requeria e imaginando meios de embalar centenas de peixes
e dezenas de aquários, de modo a minimizar as perdas. Dois dias antes da minha
mudança para a cidade de Amparo, vislumbrei algumas larvinhas escondendo-se
debaixo dos tufos de musgo. Uma inspeção nas plantas revelou alguns ovos de
mais ou menos dois milímetros de diâmetro, de coloração âmbar-alaranjado claro.
Sem nenhuma assistência de minha parte, os peixes haviam desovado e suas
larvinhas tinham eclodido. Passei a alimentá-los com naúplios recém-nascidos de
artêmia, da mesma forma que alimentava meus outros tetras. Porém, no dia
seguinte, a fêmea estava morta. O mesmo destino tiveram as larvas e apenas o
macho de Rachoviscus crassiceps seguiucom
a mudança para Amparo.
De lá para cá, o mundo
deu várias voltas e perdi o contato com praticamente todas as pessoas daquela
época, deixando inclusive de me dedicar aos killifishes. Há algum tempo,
retomei o contato com Marcelo Notare, que sistematicamente insistia para que eu
voltasse a escrever. Em uma das várias conversas que tivemos, soube que, ao que
tudo indica, a primeira pessoa a conseguir a desova de Rachoviscus
crassiceps em aquário foi o aquarista carioca Luís
Eduardo Rulff que, em comunicação pessoal ao Marcelo Notare, relatou que os
ovos tinham uma forte coloração alaranjada. Essa é mais uma informação
diferente que nos leva a especular sobre o quanto ainda precisamos saber sobre
esse admirável habitante das florestas de baixada.
Chegamos muito perto de
obter sucesso na reprodução e criação deste peixe que, agora, infelizmente, se
encontra no limiar da extinção. Venho contar essa minha história sobre Rachoviscus
crassiceps na esperança de que outros aquaristas
possam vir a se interessar e tentar reproduzir esta rara e bela espécie de
peixe caracídeo.
Rachoviscus graciliceps – a outra espécie do gênero – do sul da Bahia e norte do Espírito Santo.
Observe o corpo ligeiramente mais baixo do que a espécie do sul do Brasil. Foto: Marcelo Notare.
Agradecimentos
Marcelo Notare, pelo
incentivo. Paulo José Ferreira Canaes, por se mostrar um amigo verdadeiro e
também por me fornecer boa parte da bibliografia sobre o tema. Jorge e Elza do
Aquário Itaquera, por me facilitarem os meios para escrever este artigo. E
todas as outras pessoas que insistem em me honrar com sua amizade, apesar das
sobejas provas de que sou um amigo da onça.
Bibliografia
Franciozi, V. (1989)
Joinville: Die aquaristik in Deutsch-Brasilien. Rev. de Aquariofilia, 7: 30-36.